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PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS
Historiadores discutem mudanças na identidade cultural de São Paulo e os principais problemas que a cidade enfrenta hoje
"Imagem de gigante virou um fardo"
Tuca Vieira/Folha Imagem
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Imagem aérea da avenida Paulista |
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
"Como você faz para esse sujeito não atravessar a rua aqui? Como você faz para empurrar aquele
sujeito naquela direção e não nessa? Como você faz para impedir
esse sujeito de tentar ter acesso a
isso em vez de buscar aquilo?"
É assim que o historiador Nicolau Sevcenko, 51, ilustra o modo
como São Paulo se relaciona com
seus habitantes hoje. Como a imagem da pirâmide para os egípcios,
as formas da cidade sugerem
"anuência e entrega, uma irrefletida submissão", diz.
Para ele, o fato de a cidade cultivar uma imagem de gigantismo e
de terra de infinitas possibilidades
não só não corresponde mais à
realidade como se tornou um fardo, um obstáculo que a impede de
encontrar soluções criativas para
os problemas que a levaram a
uma "situação-limite".
Professor de história da cultura
da USP e autor de "Orfeu Extático
na Metrópole" (Companhia das
Letras), um estudo sobre as transformações de São Paulo nos anos
20 do século passado, Sevcenko é
um dos historiadores ouvidos pela Folha (leia textos nesta página)
sobre as transformações da identidade cultural de São Paulo ao
longo do tempo.
Leia alguns trechos da entrevista que o pesquisador paulista concedeu, em sua casa, em São Paulo.
Folha - O que você tem achado
das comemorações dos 450 anos?
Nicolau Sevcenko - Da parte do
governo, vejo uma intenção celebratória que tem razões óbvias, é
uma maneira de politizar a imagem da cidade num ano eleitoral.
Acho que todos estamos de
acordo que São Paulo chegou a
uma situação-limite, que requer
imaginação no enfrentamento de
problemas que se tornaram crônicos e de outros que se acentuaram de tal maneira a ponto de dar
um tom de quase calamidade ao
nosso cotidiano.
São Paulo está em um momento
crítico que exige reflexão e reavaliação não só de sua administração, mas da percepção geral das
pessoas sobre o que se tornou essa
cidade, principalmente pela diferença do que ocorreu aqui nas últimas décadas em relação ao seu
passado histórico.
É preciso reformular propostas
e não persistir em uma imagem
que não corresponde mais à realidade caótica a que chegamos.
Folha - Qual teria sido a diferença
entre as últimas décadas e seu passado histórico?
Sevcenko - Do fim do século 19
até os anos 60, as coisas funcionaram. São Paulo foi marco de um
processo de crescimento contínuo que, no Brasil, foi mais intenso do que na maior parte dos países da América Latina. Tornou-se
um pólo de atração de migração.
O célebre slogan ufanista: "A cidade que mais cresce no mundo"
é celebratório, mas a verdade é
que, até um determinado momento, correspondia a um fato.
Mas então o crescimento parou,
e a imagem persistiu, a do gigantismo, do terreno de oportunidades que se multiplicam.
Folha - O que há de negativo na
persistência dessa imagem?
Sevcenko - Um dos efeitos é que
a migração continuou, mas a cidade não tinha mais condição de
absorver. Depois, parte de suas
administrações continuou faturando em cima dessa imagem celebratória, do colosso, da monumentalidade. É a imagem daquele
Borba Gato kitsch, São Paulo como sendo esse gigante, uma coisa
de uma dimensão tão grandiosa e
vibrante, tão dinâmica que, ainda
em momentos de dificuldade, seria sempre a melhor opção.
Essa é uma questão a que se deve dar peso nestes 450 anos. Que
sentido faz continuar apostando
no simbolismo historicamente
associado ao passado da cidade.
Folha - Qual acha que foi a responsabilidade das administrações
locais nos problemas atuais?
Sevcenko - Por conta da idéia de
gigantismo metropolitano, há
aqui uma tradição de equacionar
os grandes problemas com grandes projetos de engenharia. A tendência sempre foi entregar o destino da cidade ao pensamento técnico-científico e acreditar que é
ele, na sua qualificação, que vai
sempre ter a melhor resposta.
Isso fez com que se pensasse
que qualquer questão podia ser
sempre resolvida por um projeto
mais ousado, mais grandioso,
mais tecnologicamente avançado.
Folha - Politicamente, o que isso
representou?
Sevcenko - Houve uma transição
do debate político para o campo
conservador, pois a resposta pela
racionalidade técnico-científica é
a resposta por excelência do pensamento conservador. E o que se
perdeu com isso foi a sensibilidade de um pensamento humanista.
Folha - Isso independente da
orientação partidária das administrações?
Sevcenko - Sim. Criou-se um padrão e os grandes administradores são hoje apontados como
aqueles que tiveram mais habilidade com a questão urbana a partir de uma perspectiva técnico-científica. Os projetos sempre foram pensados para racionalizar
os fluxos. A cidade criou um modo de compreender sua atuação
como sendo a desse pensamento
de grande escala e de racionalidade em dois grandes eixos, o horizontal, da abrangência, e o vertical, da intensidade do alcance.
Folha - O que poderia mudar isso?
Sevcenko - Uma percepção mais
atilada com o micro. O homem é
o personagem sacrificado por excelência. É visto como um estorvo. Já que as apostas do passado
não funcionam mais, continuar
investindo na idéia do gigantismo
significa a diminuição do espaço
do homem. Precisamos puxar o
breque e talvez mudar de veículo.
Quem sabe passar a andar de bicicleta ou a pé e ver se podemos ver
a cidade de outra maneira e crer
em soluções diferentes.
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