São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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PURGATÓRIO DA BELEZA E DO CAOS

Historiadores discutem mudanças na identidade cultural de São Paulo e os principais problemas que a cidade enfrenta hoje

"Imagem de gigante virou um fardo"

Tuca Vieira/Folha Imagem
Imagem aérea da avenida Paulista


SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

"Como você faz para esse sujeito não atravessar a rua aqui? Como você faz para empurrar aquele sujeito naquela direção e não nessa? Como você faz para impedir esse sujeito de tentar ter acesso a isso em vez de buscar aquilo?"
É assim que o historiador Nicolau Sevcenko, 51, ilustra o modo como São Paulo se relaciona com seus habitantes hoje. Como a imagem da pirâmide para os egípcios, as formas da cidade sugerem "anuência e entrega, uma irrefletida submissão", diz.
Para ele, o fato de a cidade cultivar uma imagem de gigantismo e de terra de infinitas possibilidades não só não corresponde mais à realidade como se tornou um fardo, um obstáculo que a impede de encontrar soluções criativas para os problemas que a levaram a uma "situação-limite".
Professor de história da cultura da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" (Companhia das Letras), um estudo sobre as transformações de São Paulo nos anos 20 do século passado, Sevcenko é um dos historiadores ouvidos pela Folha (leia textos nesta página) sobre as transformações da identidade cultural de São Paulo ao longo do tempo.
Leia alguns trechos da entrevista que o pesquisador paulista concedeu, em sua casa, em São Paulo.

Folha - O que você tem achado das comemorações dos 450 anos?
Nicolau Sevcenko -
Da parte do governo, vejo uma intenção celebratória que tem razões óbvias, é uma maneira de politizar a imagem da cidade num ano eleitoral.
Acho que todos estamos de acordo que São Paulo chegou a uma situação-limite, que requer imaginação no enfrentamento de problemas que se tornaram crônicos e de outros que se acentuaram de tal maneira a ponto de dar um tom de quase calamidade ao nosso cotidiano.
São Paulo está em um momento crítico que exige reflexão e reavaliação não só de sua administração, mas da percepção geral das pessoas sobre o que se tornou essa cidade, principalmente pela diferença do que ocorreu aqui nas últimas décadas em relação ao seu passado histórico.
É preciso reformular propostas e não persistir em uma imagem que não corresponde mais à realidade caótica a que chegamos.

Folha - Qual teria sido a diferença entre as últimas décadas e seu passado histórico?
Sevcenko -
Do fim do século 19 até os anos 60, as coisas funcionaram. São Paulo foi marco de um processo de crescimento contínuo que, no Brasil, foi mais intenso do que na maior parte dos países da América Latina. Tornou-se um pólo de atração de migração. O célebre slogan ufanista: "A cidade que mais cresce no mundo" é celebratório, mas a verdade é que, até um determinado momento, correspondia a um fato.
Mas então o crescimento parou, e a imagem persistiu, a do gigantismo, do terreno de oportunidades que se multiplicam.

Folha - O que há de negativo na persistência dessa imagem?
Sevcenko -
Um dos efeitos é que a migração continuou, mas a cidade não tinha mais condição de absorver. Depois, parte de suas administrações continuou faturando em cima dessa imagem celebratória, do colosso, da monumentalidade. É a imagem daquele Borba Gato kitsch, São Paulo como sendo esse gigante, uma coisa de uma dimensão tão grandiosa e vibrante, tão dinâmica que, ainda em momentos de dificuldade, seria sempre a melhor opção.
Essa é uma questão a que se deve dar peso nestes 450 anos. Que sentido faz continuar apostando no simbolismo historicamente associado ao passado da cidade.

Folha - Qual acha que foi a responsabilidade das administrações locais nos problemas atuais?
Sevcenko -
Por conta da idéia de gigantismo metropolitano, há aqui uma tradição de equacionar os grandes problemas com grandes projetos de engenharia. A tendência sempre foi entregar o destino da cidade ao pensamento técnico-científico e acreditar que é ele, na sua qualificação, que vai sempre ter a melhor resposta.
Isso fez com que se pensasse que qualquer questão podia ser sempre resolvida por um projeto mais ousado, mais grandioso, mais tecnologicamente avançado.

Folha - Politicamente, o que isso representou?
Sevcenko -
Houve uma transição do debate político para o campo conservador, pois a resposta pela racionalidade técnico-científica é a resposta por excelência do pensamento conservador. E o que se perdeu com isso foi a sensibilidade de um pensamento humanista.

Folha - Isso independente da orientação partidária das administrações?
Sevcenko -
Sim. Criou-se um padrão e os grandes administradores são hoje apontados como aqueles que tiveram mais habilidade com a questão urbana a partir de uma perspectiva técnico-científica. Os projetos sempre foram pensados para racionalizar os fluxos. A cidade criou um modo de compreender sua atuação como sendo a desse pensamento de grande escala e de racionalidade em dois grandes eixos, o horizontal, da abrangência, e o vertical, da intensidade do alcance.

Folha - O que poderia mudar isso?
Sevcenko -
Uma percepção mais atilada com o micro. O homem é o personagem sacrificado por excelência. É visto como um estorvo. Já que as apostas do passado não funcionam mais, continuar investindo na idéia do gigantismo significa a diminuição do espaço do homem. Precisamos puxar o breque e talvez mudar de veículo. Quem sabe passar a andar de bicicleta ou a pé e ver se podemos ver a cidade de outra maneira e crer em soluções diferentes.

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