São Paulo, segunda, 25 de janeiro de 1999

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Diretor recuperou elo perdido do cinema

LEON CAKOFF
da Equipe de Articulistas

A impressionante expressão agridoce de Takeshi Kitano resume o furor de dois mundos que se completam sem se entender: o Japão aplicado no rigor dos rituais e o Japão dito moderno, mas implacável com os dissonantes da sua secular hierarquia.
É fascinante a figura enigmática de Kitano, mais ainda depois de uma irreversível paralisia facial que sofreu ao cair de moto. Ou desde que teve o traçado da sua personalidade definida ao atuar no filme "Furyo", do mestre Nagisa Oshima, como o sádico, primitivo e terno sargento Hara, seu primeiro papel dramático no cinema depois de conquistar popularidade no Japão como humorista de rádio e televisão. Hoje ele é o homem mais famoso na mídia do seu país, depois de 25 anos de atividades como diretor, ator, escritor, artista plástico e comediante de TV.
Kitano, mais conhecido no Japão como "Beat Takeshi", é a mais versátil personalidade do cinema contemporâneo graças ao seu rosto enigmático. Coleciona dezenas de comparações que, apesar dos seus traços orientais, não deixam de resumir a própria história do cinema. De Buster Keaton a Quentin Tarantino.
A lista é imensa. Somente durante o 54º Festival de Veneza, em que recebeu o consagrador Leão de Ouro por "Hana-Bi", a coleção de comparações surgia aos montes na imprensa internacional em forma de elogios: Clint Eastwood, Don Siegel, Yasujiro Ozu, Samuel Fuller, Frank Capra, Sam Peckinpah, Jean-Pierre Melville, Dashiell Hammett, Jacques Tati...
O fenômeno Kitano impunha um estilo próprio e original e confundia os cinéfilos, mesmo os mais unânimes na torcida por sua premiação em Veneza, em 1997. Hoje é possível ver com mais clareza o formato desse estilo com o retrospecto dos filmes dirigidos por ele e melhor ainda nos que ele também atua.
E foi só depois do sucesso em Veneza que Tarantino conseguiu convencer a sua produtora, Miramax, a lançar "Sonatine", outro ótimo filme dirigido e interpretado por Kitano em 1993, em território americano.
O feitiço virou contra o feiticeiro na primavera passada no circuito cult americano. E surgiram novas comparações. "Esqueçam Tarantino, aqui está Takeshi", sentenciou o "The Boston Phoenix". "Hana-Bi' penetra na escuridão da violência para revelar o seu coração aflito", filosofou a "Rolling Stone". "Um tira da pesada com ternura", definiu o "New York Times". "Hana-Bi' é como um filme de Orson Welles refeito por Jerry Lewis", atreveu-se a "Premiere" de Los Angeles.
O minimalismo asfixiante, o lirismo complacente, a perseverança quase irracional, a violência abafada, a paixão e a resignação quase religiosas fazem desse gênio do cinema um novo porta-voz de corações aflitos.
E aí cabem todas as homenagens retrospectivas do cinema sobre a imagem de Takeshi Kitano. Ele cobre ansiedades como se cobria no tempo em que o cinema nasceu e a humanidade imigrava perplexa para fazer Américas particulares.
Graças a Kitano o cinema não perde a sua inocência original e nada parece muito diferente deste lado das telas, um século depois.



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