São Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2000


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ENCONTRO HISTÓRICO
Cineasta argentino Fernando Solanas fala com Zé Celso, Walmor Chagas e grupos em SP
Teatro encontra chão em "A Nuvem"

VALMIR SANTOS
da Redação

A história de um grupo de teatro independente que resiste à ameaça de ter sua sede demolida, narrada no filme "A Nuvem", em cartaz há duas semanas, está mobilizando a chamada classe teatral em São Paulo.
Na madrugada do último domingo, o Oficina abrigou um encontro histórico do cineasta argentino Fernando Solanas com diretores e atores brasileiros, entre eles José Celso Martinez Corrêa, Walmor Chagas, Renato Borghi, Eduardo Tolentino de Araújo, Marco Antônio Rodrigues e o grupo Parlapatões, Patifes & Paspalhões. Estavam presentes cerca de 80 pessoas.
O clima era típico das reuniões que marcaram o movimento teatral nos anos 60 e 70 (muitas delas clandestinas), quando os grupos adotavam uma postura politicamente engajada frente ao regime militar. É desse período, por exemplo, a gênese do Centro Popular de Cultura (CPC-UNE), órgão que tinha entre seus idealizadores o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho ("Rasga Coração") e o cineasta Leon Hirzsman ("Eles Não Usam Black-Tie", adaptação da obra de Guarnieri).
De volta ao encontro, foram duas horas de discussão sobre os pontos que ligam a situação dos artistas argentinos do Teatro Espelho, no roteiro ficcional de Solanas, com o cenário desalentador do teatro paulista, por extensão brasileiro, no curso da década que mingua.
Órfão das autoridades governamentais, sem público cativo, alvo da concorrência da TV (coopção dos atores que vêem no palco um apêndice), carente da ousadia e do talento de dramaturgos, diretores, atores, enfim, são muitos os cânones da crise eternamente anunciada.
Apesar de "A Nuvem" se passar durante meses de uma chuva intermitente em Buenos Aires, Zé Celso diz ter vislumbrado no filme "um sol ofuscante" que o catapultou para a luz e as trevas. "Fiquei com vergonha quando acabou a sessão, vergonha por causa desse espelho terrível de olhar. Mas depois veio a passagem para o orgulho", ressuscita o diretor do Uzyna Uzona, visivelmente emocionado durante boa parte da conversa.
Depois de assistir à sessão do filme, em cartaz no espaço Unibanco, Zé Celso se viu estimulado a agir. "Não dá mais para ficar no discurso, na estatística. O charme individual, a iniciativa isolada de um grupo ou outro, nada disso vai mudar as coisas. Temos de exigir um fundo público para o teatro", reivindica. "E os únicos que podem quebrar esse espelho são os atores."
A anuência de Solanas cristalizou idéias e pensamentos que iam pela cabeça dos presentes. O cineasta enumerou êxitos conquistados pelos atores argentinos, à custa de invasão do Congresso ou passeatas. Foi assim, por exemplo, que nasceu o Instituto Nacional de Teatro, que a então dobradinha Menem/Cavallo engoliu goela abaixo por conta do apoio da população à causa.
"Os atores têm mais poder para mobilizar a opinião pública que os operários", sentencia Solanas. "Se vocês ocupassem a avenida Paulista, com certeza todos os meios de comunicação teriam de tratar do assunto. E os políticos, sabemos, gostam de aparecer e vivem de resultados imediatos", comenta Solanas, com conhecimento de causa: ele já deputado em seu país.
A atriz Imara Reis, que vem de ano e meio de atuação em Buenos Aires, participando do elenco de "Chiquititas", novela exibida pelo SBT, afirma que os atores argentinos são mais conscientes politicamente do que os colegas brasileiros. "Lá ninguém tem medo de falar e perder o emprego, não existe essa coisa do monopólio da Globo, por exemplo", compara. "E são os atores mais conhecidos que puxam as reivindicações."
Zé Celso se espanta. "Aqui no Brasil, a divisão entre quem faz teatro e televisão é enorme, transformaram-nos numa espécie de casta", queixa-se. O seu exercício revisionista chegou ao ponto de criticar "as últimas Cacildas" que passaram pelo Oficina, aludindo a Bete Coelho. "Foram Cacildas entre quatro paredes, sem a consciência da lida. Cacilda Becker era antes de tudo uma atriz social", rememora.
Aos poucos, instalou-se o tom de assembléia. Os artistas sentiam-se como numa ágora das antigas cidades gregas. "O artista argentino tem um sentimental, uma gravidade que nós não temos. Aqui a gente é sempre associada ao humor e não põe essa verdade para fora, que é necessária para transformar as coisas", despacha Walmor Chagas. Ele era casado com Cacilda Becker, atualmente vive em Guaratinguetá (SP) e aceitou o convite para o encontro porque ficou comovido com os reflexos da história portenha.
Chagas ironiza que "o teatro precisa, urgentemente, da sua Semana de Arte Moderna", alegando que um dos marcos culturais do país, em 22, contemplou mais as artes plásticas e a literatura, deixando o teatro a ver navios.
Renato Borghi, um dos âncoras da montagem de "O Rei da Vela" há 30 anos -texto do modernista Oswald de Andrade-, ao lado de Zé Celso e outros do mesmo Oficina, não esconde a indignação.
"As pessoas têm horror ao teatro, querem estabelecer com ele uma relação mumificada, que não tenha outra intenção que não oferecer divertimento imediato à platéia, que aplaude e depois vai comer pizza", argumenta.
Um dos organizadores do movimento Arte Contra a Barbárie, que vem ganhando corpo desde o lançamento do manifesto, cerca de um ano atrás, o diretor Eduardo Tolentino de Araújo, do grupo Tapa, também foi implacável na análise. "Um dos aspectos do filme que mais me chamou atenção foi o processo de idiotização das pessoas. Estamos tão imbecilizados que, na hora em que anunciarem a privatização da Petrobras, ninguém vai falar nada", aponta.
Apesar das idiossincrasias pinçadas aqui e ali no encontro, a perspectiva de aproximação entre o Arte Contra a Barbárie e Zé Celso resgata um sentido que o teatro havia perdido.
Para aqueles que desdenham o "discurso da classe", Solanas lembra que um dos motes de "A Nuvem" foi o processo de privatização que impregnou a economia do seu país no início da década. "Vários grupos tiveram luz e telefone cortados", avisa. Por aqui, tem-se notícia de grupos que fizeram "gato" para ter luz em cena.


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