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CINEMA - ESTRÉIAS
"Verão de Sam" foi o da paranóia na NY de 77
SAM ROBERTS
do "The New York Times"
No verão de 1977, Nova York
enlouqueceu.
Um alpinista chamado George
Willig escalou o edifício do World
Trade Center. Bombas terroristas
atribuídas a nacionalistas porto-riquenhos explodiram em lojas
de departamentos e edifícios de
escritórios em Manhattan. A temperatura chegou aos 40, quase
superando o recorde. Um blecaute da empresa de eletricidade
Consolidated Edison desencadeou uma onda de saques que resultou em mais de 3.000 prisões.
Elvis Presley morreu. Foi aberto o
Studio 54.
E, por último, um serial killer
psicopata, armado com um revólver calibre 44 e auto-intitulado
"Filho de Sam", fez NY de refém
como nenhum outro criminoso
havia feito desde que, décadas antes, um revoltado ex-funcionário
da Con Ed (Consolidated Edison), George Metesky, dera vazão
periódica a sua ira na pele do folclórico Bombardeador Maluco.
O filme mais recente de Spike
Lee, "O Verão de Sam", não é um
documentário, mas capta de maneira contundente a depravação
de uma cidade que perdera não
apenas a cabeça, mas o rumo. Milhares de filmes já foram feitos em
e sobre NY, mas relativamente
poucos produziram um instantâneo tão hiper-real da cidade sempre mutante naquele momento
exato no tempo.
Aquele metafórico verão de
1977 se estendeu de março até outubro e marcou o ponto intermediário de um período de cinco
anos durante o qual os nova-iorquinos tentavam apegar-se a visões conflitantes. Uma delas era
de que os bons e velhos tempos tinham sido os anos 50, e que nas
duas décadas seguintes a cidade já
passara de seu auge e se tornara
ingovernável.
Uma segunda visão definia NY
como uma meca de imigrantes,
sempre capaz de dar a volta por
cima e cujas ruas, desde que fossem consertadas as verdadeiras
crateras que as desfiguravam, ainda voltariam a ser ladrilhadas de
ouro.
As duas visões são apresentadas
nos solilóquios em tom sombrio
que abrem e fecham "Verão de
Sam". Quando o filme começa, o
colunista de jornal Jimmy Breslin
está na Times Square de hoje, livre
de todo tipo de impurezas, refletindo que o comércio anda de
vento em popa e a criminalidade
está em baixa. A seguir, para a
parte do público que sequer tinha
nascido quando se deram os
acontecimentos narrados em "O
Verão de Sam", ele recorda: "Mas
nem sempre foi assim. Este filme
trata de um tempo diferente, um
lugar diferente: os bons e velhos
dias, o verão fervente de 1977".
Spike Lee recria com autenticidade total uma época anárquica
que foi moldada, de maneira anômala, pelos últimos estertores de
uma revolução sexual totalmente
permissiva, por banqueiros e corretores de títulos que decidiram
punir a população de NY por ser
perdulária demais e pela maior
caçada a um criminoso empreendida pela polícia na história da cidade.
O Filho de Sam, que escarnecia
da polícia e da imprensa com bizarros bilhetes manuscritos, foi,
escreveu Breslin, o primeiro assassino do qual teve conhecimento que sabia manejar não apenas
uma arma, mas também um ponto e vírgula. Apesar disso, sua história foi em grande medida própria para os tablóides -uma história de arrepiar a espinha, sobre
cidadãos comuns do Bronx, de
Queens e do Brooklyn à beira de
um ataque coletivo de nervos, dominados pelo medo de um assassino que escolhia suas vítimas a
esmo. Esses foram os bons e velhos tempos para os tablóides nova-iorquinos, e talvez tenham sido os últimos -talvez tenha sido
a última vez em que um assunto
que se perpetuava por conta própria vendia milhares de exemplares adicionais por dia.
Naquele verão, Spike Lee cursava o segundo ano da faculdade
Morehouse e estava em casa, no
Brooklyn, sem nada para fazer a
não ser experimentar sua nova
câmera super-8. Ele produziu um
vídeo caseiro, "Last Hustle in
Brooklyn", e voltou a Morehouse
no outono daquele ano decidido a
formar-se em comunicações de
massa.
"Os bons e velhos tempos -estou falando como velho", disse
Lee em entrevista. "Hoje a cidade
está mais limpa, o ar está melhor,
as escolas estão piores, os tiras estão piores, o número de armas aumentou." Mas a criminalidade,
admite, diminuiu.
Em "O Verão de Sam", os assassinatos foram o pano de fundo
contra o qual se desenrola uma
história fictícia de amor, ódio e
distanciamento. A orgia de mortes desencadeada pelo homicida
do revólver calibre 44 também esparramou-se por uma tela muito
maior. Na condição de editor de
cidades do "The Daily News",
meu trabalho na época consistia
em digerir a loucura diária e
transpô-la para a primeira página
do jornal.
No filme, o personagem Ritchie
(Adrien Brody) personifica a atitude psicossexual liberada da geração anterior à Aids. É rejeitado
por seus antigos amigos num setor principalmente ítalo-americano do Bronx, não apenas por ousar ser diferente, mas por fazê-lo
em outro bairro -Manhattan,
ainda por cima. "Os Embalos de
Sábado à Noite", lançado naquele
ano, termina com John Travolta
percebendo que já cresceu além
dos limites impostos por Bay Ridge, Brooklyn. Ele parte em direção
a Manhattan, que era sinônimo
de esperança. Em "Verão de
Sam", Mira Sorvino e John Leguizamo vêem os mundos bizarros
do Studio 54, CBGB's and Plato's
Retreat, em Manhattan, não tanto
como admirável novo mundo,
mas como outro planeta.
Outra transição se processava
ao mesmo tempo. O barulho ensurdecedor das máquinas de escrever (uma das quais cheguei a
ver sendo atirada durante uma
briga no "The Daily News") dava
lugar ao silêncio desorientador
dos computadores (para compensar, os teclados emitiam um
"bip" a cada vez que se batia numa tecla. Mas o dispositivo foi
desconectado, já que fazia a Redação do jornal soar como um aviário superpovoado).
O silêncio era rompido pelas
manchetes gritantes. Os excessos
jornalísticos cometidos naquele
verão foram julgados sem dó nem
piedade pelos críticos, que chegaram a sugerir que a cobertura exagerada dos tablóides e da televisão
pode haver encorajado o Filho de
Sam em suas investidas, embora
já tivesse atacado várias vezes antes de ser publicamente identificado como serial killer, em março
daquele ano. Mas o clima de terror era palpável, e "O Verão de
Sam" o reproduz com intensidade assustadora.
No filme, Spike Lee faz o papel
de um repórter de TV que vai até
um bairro negro em busca da "visão mais escura" dos fatos. Entrevista uma mulher que, expressando o sentimento das minorias étnicas e raciais, se diz aliviada por o
assassino não ser negro.
Tradução Clara Allain
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