São Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2000


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CINEMA - ESTRÉIAS
"Verão de Sam" foi o da paranóia na NY de 77

SAM ROBERTS
do "The New York Times"


No verão de 1977, Nova York enlouqueceu.
Um alpinista chamado George Willig escalou o edifício do World Trade Center. Bombas terroristas atribuídas a nacionalistas porto-riquenhos explodiram em lojas de departamentos e edifícios de escritórios em Manhattan. A temperatura chegou aos 40, quase superando o recorde. Um blecaute da empresa de eletricidade Consolidated Edison desencadeou uma onda de saques que resultou em mais de 3.000 prisões. Elvis Presley morreu. Foi aberto o Studio 54.
E, por último, um serial killer psicopata, armado com um revólver calibre 44 e auto-intitulado "Filho de Sam", fez NY de refém como nenhum outro criminoso havia feito desde que, décadas antes, um revoltado ex-funcionário da Con Ed (Consolidated Edison), George Metesky, dera vazão periódica a sua ira na pele do folclórico Bombardeador Maluco.
O filme mais recente de Spike Lee, "O Verão de Sam", não é um documentário, mas capta de maneira contundente a depravação de uma cidade que perdera não apenas a cabeça, mas o rumo. Milhares de filmes já foram feitos em e sobre NY, mas relativamente poucos produziram um instantâneo tão hiper-real da cidade sempre mutante naquele momento exato no tempo.
Aquele metafórico verão de 1977 se estendeu de março até outubro e marcou o ponto intermediário de um período de cinco anos durante o qual os nova-iorquinos tentavam apegar-se a visões conflitantes. Uma delas era de que os bons e velhos tempos tinham sido os anos 50, e que nas duas décadas seguintes a cidade já passara de seu auge e se tornara ingovernável.
Uma segunda visão definia NY como uma meca de imigrantes, sempre capaz de dar a volta por cima e cujas ruas, desde que fossem consertadas as verdadeiras crateras que as desfiguravam, ainda voltariam a ser ladrilhadas de ouro.
As duas visões são apresentadas nos solilóquios em tom sombrio que abrem e fecham "Verão de Sam". Quando o filme começa, o colunista de jornal Jimmy Breslin está na Times Square de hoje, livre de todo tipo de impurezas, refletindo que o comércio anda de vento em popa e a criminalidade está em baixa. A seguir, para a parte do público que sequer tinha nascido quando se deram os acontecimentos narrados em "O Verão de Sam", ele recorda: "Mas nem sempre foi assim. Este filme trata de um tempo diferente, um lugar diferente: os bons e velhos dias, o verão fervente de 1977".
Spike Lee recria com autenticidade total uma época anárquica que foi moldada, de maneira anômala, pelos últimos estertores de uma revolução sexual totalmente permissiva, por banqueiros e corretores de títulos que decidiram punir a população de NY por ser perdulária demais e pela maior caçada a um criminoso empreendida pela polícia na história da cidade.
O Filho de Sam, que escarnecia da polícia e da imprensa com bizarros bilhetes manuscritos, foi, escreveu Breslin, o primeiro assassino do qual teve conhecimento que sabia manejar não apenas uma arma, mas também um ponto e vírgula. Apesar disso, sua história foi em grande medida própria para os tablóides -uma história de arrepiar a espinha, sobre cidadãos comuns do Bronx, de Queens e do Brooklyn à beira de um ataque coletivo de nervos, dominados pelo medo de um assassino que escolhia suas vítimas a esmo. Esses foram os bons e velhos tempos para os tablóides nova-iorquinos, e talvez tenham sido os últimos -talvez tenha sido a última vez em que um assunto que se perpetuava por conta própria vendia milhares de exemplares adicionais por dia.
Naquele verão, Spike Lee cursava o segundo ano da faculdade Morehouse e estava em casa, no Brooklyn, sem nada para fazer a não ser experimentar sua nova câmera super-8. Ele produziu um vídeo caseiro, "Last Hustle in Brooklyn", e voltou a Morehouse no outono daquele ano decidido a formar-se em comunicações de massa.
"Os bons e velhos tempos -estou falando como velho", disse Lee em entrevista. "Hoje a cidade está mais limpa, o ar está melhor, as escolas estão piores, os tiras estão piores, o número de armas aumentou." Mas a criminalidade, admite, diminuiu.
Em "O Verão de Sam", os assassinatos foram o pano de fundo contra o qual se desenrola uma história fictícia de amor, ódio e distanciamento. A orgia de mortes desencadeada pelo homicida do revólver calibre 44 também esparramou-se por uma tela muito maior. Na condição de editor de cidades do "The Daily News", meu trabalho na época consistia em digerir a loucura diária e transpô-la para a primeira página do jornal.
No filme, o personagem Ritchie (Adrien Brody) personifica a atitude psicossexual liberada da geração anterior à Aids. É rejeitado por seus antigos amigos num setor principalmente ítalo-americano do Bronx, não apenas por ousar ser diferente, mas por fazê-lo em outro bairro -Manhattan, ainda por cima. "Os Embalos de Sábado à Noite", lançado naquele ano, termina com John Travolta percebendo que já cresceu além dos limites impostos por Bay Ridge, Brooklyn. Ele parte em direção a Manhattan, que era sinônimo de esperança. Em "Verão de Sam", Mira Sorvino e John Leguizamo vêem os mundos bizarros do Studio 54, CBGB's and Plato's Retreat, em Manhattan, não tanto como admirável novo mundo, mas como outro planeta.
Outra transição se processava ao mesmo tempo. O barulho ensurdecedor das máquinas de escrever (uma das quais cheguei a ver sendo atirada durante uma briga no "The Daily News") dava lugar ao silêncio desorientador dos computadores (para compensar, os teclados emitiam um "bip" a cada vez que se batia numa tecla. Mas o dispositivo foi desconectado, já que fazia a Redação do jornal soar como um aviário superpovoado).
O silêncio era rompido pelas manchetes gritantes. Os excessos jornalísticos cometidos naquele verão foram julgados sem dó nem piedade pelos críticos, que chegaram a sugerir que a cobertura exagerada dos tablóides e da televisão pode haver encorajado o Filho de Sam em suas investidas, embora já tivesse atacado várias vezes antes de ser publicamente identificado como serial killer, em março daquele ano. Mas o clima de terror era palpável, e "O Verão de Sam" o reproduz com intensidade assustadora.
No filme, Spike Lee faz o papel de um repórter de TV que vai até um bairro negro em busca da "visão mais escura" dos fatos. Entrevista uma mulher que, expressando o sentimento das minorias étnicas e raciais, se diz aliviada por o assassino não ser negro.


Tradução Clara Allain


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