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CARLOS HEITOR CONY
O fim de caso num final de ano em Roma
Haviam combinado a separação após seis anos de um caso que,
além da vida comum, era um comum amor, uma carne comum e
pronta para o que desse e viesse. E,
além da carne, a alegria comum
que brilhava nos olhos dela e no
riso dele, por qualquer coisa e por
coisa alguma. Inconscientemente,
ele sabia que vivera o melhor período de sua vida, mas o mal fora
feito, e a solução civilizada era
aquela: a separação.
Por ironia, mais ironia do que
premonição, anos antes ele fizera
um romance em que a trama
principal era parecida com aquele
fim de caso. Um casal resolve se
separar, mas há um verão no
meio. E eles decidem passar aquele verão juntos, pela última vez.
Depois, que cada qual fosse à sua
vida, levando os escombros de si
mesmos.
No livro, a trama saíra indolor,
embora carregada, angustiada
demais -resultou num filme
com Jardel Filho e Norma Bengell,
uma amiga dele foi assistir e disse
que saíra do cinema com o coração apertado, embora nada de
trágico ou doloroso tivesse acontecido. Agora, na vida real, tudo seria diferente.
Quando decidiram a separação,
já estavam de passagens compradas e hotéis reservados para um
mês na Europa. Ele ainda jogara
a dúvida no ar -""E a viagem?
Vamos devolver as passagens?"-
e ele olhara tudo em conjunto,
olhara inclusive para ele, humilde
e humilhado diante dela. E decidira: ""Não, primeiro a viagem.
Depois vamos ver...".
Foram ver. Era fim de ano, muito calor no Rio, embarcaram no
DC-10 da Alitalia, na hora da decolagem se deram as mãos. Havia
muito que não se davam mãos.
Mas, na hora em que as turbinas
roncaram, repetiram o rito antigo, quase mecanicamente. Aquele
contato de pele contra pele foi o
reinício, o início do fim de uma
era.
Daí que tentaram dormir abraçados e quase fizeram amor lá
mesmo, a 10 mil pés do nível do
mar, enquanto na cabine escurecida os outros passageiros assistiam às aventuras do filme que estava em moda, ""Emanuelle", o sexo nas alturas, a música que ficou
também em moda, até hoje,
quando por acaso ouve aquela
melodia banal, sente o gosto dela
a seu lado, pedindo mais uma vez.
Em Roma, o mesmo hotel de férias antigas. Ela entrou no mesmo
quarto, passou a mão pelo papel
de parede, uns crisântemos dourados em fundo vermelho pálido.
E disse em voz baixa, só para ela:
""Babilonie retrouvé".
Ele ouviu, mas fingiu que não
ouviu, ou melhor, que ouviu e não
entendeu, ou entendeu e não deu
importância. Sim, Scott Fitzgerald
vinha a calhar, apesar do conto
dele se passar em Paris, que estivera em moda desde Henry Miller.
Roma era outra coisa, a loba eterna amamentando seus filhos famintos. Por tudo isso, ele fingiu
que não ouviu a alusão à Babilônia reencontrada, a volta ao passado recente, a tentativa de começar tudo de novo.
Em Roma fazia frio, o quarto do
hotel estava bem aquecido, só saíram para o ""capodanno", a festa
de fim de ano. Compraram uma
mesa num restaurante típico do
Trastevere, ela se enfeitou de serpentinas e flores no cabelo, ele colocou um chapéu esquisito na cabeça e um colar de gerânios, vermelhos como gotas de sangue explodidas e congeladas no plástico
vagabundo.
Na época, ele gostava de beber
champanhe -e ela também. Ao
enfrentarem a segunda garrafa, o
""capodanno" explodiu, todo
mundo cantou e dançou, uma
serpentina vermelha caiu sobre a
mesa deles. Ficaram tristes de repente. Sabiam que no próximo
fim de ano estariam separados.
Ela guardou a serpentina vermelha na pequenina bolsa que usava. Olhou-o mais com pena dele
do que dela própria. E disse: ""Vamos". Ele entendeu.
Não havia ninguém pelas ruas.
Vez ou outra passava um carro
apressado, em busca de alguma
festa. Ninguém dava importância
ao casal que se espremia contra a
amurada do Tevere, procurando
uma reentrância que combinasse
com o tamanho e a necessidade
do desejo.
O frio até que não era muito, e
eles estavam com o sangue aquecido pelo champanhe. Felizmente,
Roma não tem iluminação moderna, parece uma velha estação
ferroviária em ruínas -e o que
não faltam em Roma são ruínas.
Nada demais que abrigasse mais
uma ruína, a ruína deles próprios.
Foi um amor sofrido, na amurada úmida do rio, ele esquecera de
tirar o colar de gerânios, um deles
foi esmagado pelo dentes dela, babilônia reencontrada para nunca
mais.
Ficaram caídos na amurada do
Tevere, pareciam dois bêbados,
dois mendigos ali jogados, náufragos da noite e do ano novo. Um
casal surgiu lá longe, veio vindo,
os passos se aproximavam. Quando cruzou com eles, houve espanto. Mas tudo terminou no cumprimento, ""Auguri! Auguri!" -ele
ainda estava com o ridículo chapéu na cabeça, e ela tinha uma rosa escarlate em cima do seio- o
vestido ali se rasgara, ficara em
frangalhos.
Os carros começaram a ser mais
frequentes, passavam depressa, o
"capodanno" acabava, breve surgiria a luz do dia, do primeiro dia
do ano, do último ano de um caso
que acabou ali, no chão de Roma,
reencontrada Roma, Roma às
avessas, amor.
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