São Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
O fim de caso num final de ano em Roma

Haviam combinado a separação após seis anos de um caso que, além da vida comum, era um comum amor, uma carne comum e pronta para o que desse e viesse. E, além da carne, a alegria comum que brilhava nos olhos dela e no riso dele, por qualquer coisa e por coisa alguma. Inconscientemente, ele sabia que vivera o melhor período de sua vida, mas o mal fora feito, e a solução civilizada era aquela: a separação.
Por ironia, mais ironia do que premonição, anos antes ele fizera um romance em que a trama principal era parecida com aquele fim de caso. Um casal resolve se separar, mas há um verão no meio. E eles decidem passar aquele verão juntos, pela última vez. Depois, que cada qual fosse à sua vida, levando os escombros de si mesmos.
No livro, a trama saíra indolor, embora carregada, angustiada demais -resultou num filme com Jardel Filho e Norma Bengell, uma amiga dele foi assistir e disse que saíra do cinema com o coração apertado, embora nada de trágico ou doloroso tivesse acontecido. Agora, na vida real, tudo seria diferente.
Quando decidiram a separação, já estavam de passagens compradas e hotéis reservados para um mês na Europa. Ele ainda jogara a dúvida no ar -""E a viagem? Vamos devolver as passagens?"- e ele olhara tudo em conjunto, olhara inclusive para ele, humilde e humilhado diante dela. E decidira: ""Não, primeiro a viagem. Depois vamos ver...".
Foram ver. Era fim de ano, muito calor no Rio, embarcaram no DC-10 da Alitalia, na hora da decolagem se deram as mãos. Havia muito que não se davam mãos. Mas, na hora em que as turbinas roncaram, repetiram o rito antigo, quase mecanicamente. Aquele contato de pele contra pele foi o reinício, o início do fim de uma era.
Daí que tentaram dormir abraçados e quase fizeram amor lá mesmo, a 10 mil pés do nível do mar, enquanto na cabine escurecida os outros passageiros assistiam às aventuras do filme que estava em moda, ""Emanuelle", o sexo nas alturas, a música que ficou também em moda, até hoje, quando por acaso ouve aquela melodia banal, sente o gosto dela a seu lado, pedindo mais uma vez.
Em Roma, o mesmo hotel de férias antigas. Ela entrou no mesmo quarto, passou a mão pelo papel de parede, uns crisântemos dourados em fundo vermelho pálido. E disse em voz baixa, só para ela: ""Babilonie retrouvé".
Ele ouviu, mas fingiu que não ouviu, ou melhor, que ouviu e não entendeu, ou entendeu e não deu importância. Sim, Scott Fitzgerald vinha a calhar, apesar do conto dele se passar em Paris, que estivera em moda desde Henry Miller. Roma era outra coisa, a loba eterna amamentando seus filhos famintos. Por tudo isso, ele fingiu que não ouviu a alusão à Babilônia reencontrada, a volta ao passado recente, a tentativa de começar tudo de novo.
Em Roma fazia frio, o quarto do hotel estava bem aquecido, só saíram para o ""capodanno", a festa de fim de ano. Compraram uma mesa num restaurante típico do Trastevere, ela se enfeitou de serpentinas e flores no cabelo, ele colocou um chapéu esquisito na cabeça e um colar de gerânios, vermelhos como gotas de sangue explodidas e congeladas no plástico vagabundo.
Na época, ele gostava de beber champanhe -e ela também. Ao enfrentarem a segunda garrafa, o ""capodanno" explodiu, todo mundo cantou e dançou, uma serpentina vermelha caiu sobre a mesa deles. Ficaram tristes de repente. Sabiam que no próximo fim de ano estariam separados. Ela guardou a serpentina vermelha na pequenina bolsa que usava. Olhou-o mais com pena dele do que dela própria. E disse: ""Vamos". Ele entendeu.
Não havia ninguém pelas ruas. Vez ou outra passava um carro apressado, em busca de alguma festa. Ninguém dava importância ao casal que se espremia contra a amurada do Tevere, procurando uma reentrância que combinasse com o tamanho e a necessidade do desejo.
O frio até que não era muito, e eles estavam com o sangue aquecido pelo champanhe. Felizmente, Roma não tem iluminação moderna, parece uma velha estação ferroviária em ruínas -e o que não faltam em Roma são ruínas. Nada demais que abrigasse mais uma ruína, a ruína deles próprios. Foi um amor sofrido, na amurada úmida do rio, ele esquecera de tirar o colar de gerânios, um deles foi esmagado pelo dentes dela, babilônia reencontrada para nunca mais.
Ficaram caídos na amurada do Tevere, pareciam dois bêbados, dois mendigos ali jogados, náufragos da noite e do ano novo. Um casal surgiu lá longe, veio vindo, os passos se aproximavam. Quando cruzou com eles, houve espanto. Mas tudo terminou no cumprimento, ""Auguri! Auguri!" -ele ainda estava com o ridículo chapéu na cabeça, e ela tinha uma rosa escarlate em cima do seio- o vestido ali se rasgara, ficara em frangalhos.
Os carros começaram a ser mais frequentes, passavam depressa, o "capodanno" acabava, breve surgiria a luz do dia, do primeiro dia do ano, do último ano de um caso que acabou ali, no chão de Roma, reencontrada Roma, Roma às avessas, amor.


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