São Paulo, sexta-feira, 25 de fevereiro de 2005

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"O CASAMENTO PERFEITO"

Rohmer usa desvãos para lidar com natureza do amor

CRÍTICO DA FOLHA

Em "Minha Noite com Ela", o mais conhecido dos seus "Contos Morais", Eric Rohmer narra a história de um engenheiro que decide casar com uma garota que vê na igreja.
Em "O Casamento Perfeito", Sabine (Béatrice Romand), estudante de arte, decide romper com o amante -um pintor casado- e arrumar um marido. Uma das diferenças entre os dois filmes é que, no primeiro, o protagonista toma a decisão de casar em função de alguém que viu (embora não conheça), enquanto neste a decisão de casar precede o encontro do objeto.
A diferença mais marcante, porém, diz respeito à ênfase que Rohmer passa a dar, na série "Comédias e Provérbios" (que "O Casamento Perfeito" integra), à natureza dual do real, que o autor vê ao mesmo tempo como palpável, empírico e imaginário.
O amor é, evidentemente, um assunto propício à abordagem dessa dupla natureza das coisas. Clarisse (Arielle Dombasle), amiga de Sabine, logo trata de apresentá-la a seu primo Edmond (André Dussolier) e, em seguida, convence-a de que nunca antes presenciara um caso de "amor à primeira vista" como este.
Como saber se foi mesmo amor à primeira vista? Ou antes: o que é amor à primeira vista? Isso é o que Sabine vai tirar a limpo do momento em que se convence de que Edmond é mesmo o homem com quem vai se casar.
E Edmond é um sujeito esquivo, cujo sorriso parece sempre colocá-lo à disposição da moça, mas, ao mesmo tempo, cria uma área de escape diante da qual Sabine não tem (e nem nós) condição de decifrar aquele rosto e as suas intenções.
A natureza do amor é imaginária: lidar com essa dificuldade, e equacioná-la, não é um mérito menor de Rohmer neste filme. O objeto escolhido por Sabine (ou por qualquer pessoa) é plenamente arbitrário. Ele se funda, aqui, no fato de que alguém -Clarisse, no caso- afirma que ele existe. Ou seja, o olhar dessa terceira pessoa é fundamental para que o amor passe do mundo imaginário ao mundo concreto. O amor precisa -ou pelo menos aprecia- ser referendado para existir: a "pessoa de fora" é tão importante, no caso, quanto os amantes.
Como quase sempre em Rohmer, como sempre nas suas séries, "O Casamento Perfeito" preserva a estrutura de conto: poucos personagens, uma ficção ligeira, centrada em uma única questão e suas variantes.
É sobretudo pela "mise-en-scène" que o filme desperta o interesse do espectador, isto é, pela maneira como Rohmer permite que essas duas instâncias, a do empírico e a do imaginário, se manifestem plenamente ao longo do filme, se encontrem e se desencontrem, antes do desenlace.
No caso, a notar, a primeira e a última cena, quase idênticas, com Sabine cruzando, no interior de um trem, com um mesmo rapaz. Mas a disposição dela em face do mundo é inteiramente diversa. São esses pequenos desvãos, no entanto, nos quais o cinema dá conta da vastidão de cada ser, que fazem o encanto de "O Casamento Perfeito".
(INÁCIO ARAUJO)


Um Casamento Perfeito
Le Beau Mariage
    
Direção: Eric Rohmer
Produção: França, 1982
Com: Béatrice Romand, André Dussolier
Quando: a partir de hoje no Cinesesc


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