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CARLOS HEITOR CONY
A emocionante história de um quase naufrágio
Toda vez que tomo conhecimento de um naufrágio,
como o recente, em Cabo Frio, encontro um motivo a mais para
discordar de Dorival Caymmi:
não é doce morrer no mar. Aliás,
pensando bem, não é doce morrer
em lugar algum, nem mesmo em
cima da cama, muito menos em
cima de um vulcão, como Silva
Jardim, que acabou tragado pela
pérfida boca do Vesúvio, monstruosa cratera que de séculos em
séculos vomita fogo e soterra cidades.
Como quase todo mundo, tenho
também minha história nada heróica, um sufoco passado no mar,
não em alto-mar, nem diante dos
"infames escrópolos de Acroceráuna" que tanto medo deram a
Horácio quando soube que seu
amigo Virgílio iria visitar as ilhas
gregas para fazer a sua "Eneida".
Quase fui ser banquete dos peixes
nas águas geralmente mansas e
amigas da baía da Guanabara.
Se a história não merece ser
contada pela insignificância do
cronista, que não faria falta alguma se fosse tragado pelo "mare
turgidum", merece ser lembrada
por causa do nome, Virnorel, que
até hoje não esqueci e levei tempo
a saber o que era.
Deu-se que meu primeiro sogro
tinha duas lanchas, uma Chris
Craft importada, que somente ele
usava, e uma outra, produto de
fundo de quintal, como a traineira que emborcou em Cabo Frio
semana passada. Primitivamente, era um escaler de um navio desativado que apodrecia nas proximidades de Niterói. O primeiro
dono comprou-o ou roubou-o,
botou bancos novos, calafetou as
frestas e instalou um motor de
centro, um Chrysler Marine de
quatro cilindros, terceira mão,
cuja principal qualidade era esquentar e afogar.
Naquele tempo eu era um disponível jogador de futebol de
praia, não fazia nada além de jogar peladas e, eventualmente,
pescar pelas imediações de Paquetá e Governador, a bordo da
tal lancha improvisada e que tinha o nome, também improvisado, de Virnorel.
O mistério durou anos, até que
me explicaram: o primitivo dono
tinha três filhas, Virgínia, Norma
e Elisa. Na impossibilidade de ter
três tristes lanchas, ficou quites
com as filhas compondo com as
primeiras sílabas das três o nome
final da embarcação: Vir, nor, el.
Certa vez, contei isso ao Antônio
Houaiss e ele nem se espantou:
disse que mais da metade dos nomes que usamos tiveram composição idêntica ou análoga.
Bem, explicado o nome, explica-se o quase naufrágio. Há no
meio da baía, na rota que vai para Paquetá, uma ilha chamada
Jurubaíba, que, quando a maré
enche, se transforma em duas,
passando a ser ilhas de Jurubaíba.
Naquele remoto tempo, mereciam o adjetivo que os maus escritores dão sempre às ilhas abandonadas e desertas: paradisíacas.
Em sua versão de ilha ou de ilhas,
eram realmente paradisíacas,
areias brancas, mar límpido e
ainda não poluído pelos detritos
da Petrobras, que construía um
terminal ali perto, na ilha D'Agua, derrubando uma bonita floresta que parecia nascer das ondas já referidas como mansas e
amigas.
Enchi a Virnorel de cunhados,
primos e vizinhos, ao todo umas
15 pessoas temerárias, que confiaram na Virnorel, que não merecia confiança, e em mim, que merecia menos confiança. Partimos
cantando as emoções do mar, que
estava liso como a pele do rosto
da mulher amada, chegamos às
Jurubaíba, que eram duas porque
a maré estava baixa. Tomamos
banho, improvisamos um churrasco, enfim, fizemos o programa
combinado até que começou a soprar o sudoeste. É um vento mau-caráter, relativamente raro na
baía, onde sempre sopra o gostoso
e pacífico noroeste. Para falar a
verdade, eu entendo pouquíssimo
de ventos, como nada entendo de
nada. Mas sempre ouvira dizer
que o sudoeste é traiçoeiro.
As duas ilhas se transformaram
em uma, e na impossibilidade de
encomendá-la a um timoneiro
melhor, encomendei a viagem de
volta a Santo Antônio. Quando
embiquei a proa para o continente, surpresa, não havia continente, que desaparecera encoberto
pelas ondas cada vez mais altas.
Sem bússola, sem estrelas -e
mesmo que as tivesse não saberia
entendê-las como aquele poeta
que ouvia estrelas- joguei toda
minha esperança no motor que
roncava como um bicho agonizante, ameaçando parar a cada
tranco mais forte das ondas.
Não foi no mar, onde nunca
aprendi nada, somente a nadar,
que me ensinaram uma lei básica: não se deve dar murro em
ponta de faca. Adaptando aquela
lei às circunstâncias, desconfiei
que não adiantava esmurrar as
ondas, enfrentando-as com a encarquilhada Virnorel e o esclerosado motor da Chrysler Marine.
Fui bordejando as ondas, que os
poetas costumam chamar de vagas, e como não sabia onde era o
continente, qualquer outro lugar
me servia, desde que não fosse a
barra, que me levaria da baía de
Guanabara para o oceano Atlântico, o Mar Tenebroso dos navegadores do século 16. E aí eu não
estaria aqui escrevendo essas bobagens.
Fui sair a cinco quilômetros do
lugar de onde partira. Como os
peregrinos que visitam os santuários, todos os passageiros se ajoelharam em terra para agradecer a
salvação. Eu cheguei a pensar em
mandar construir no local uma
capela, mas não tinha nem recursos nem obstinação para isso.
Agradeci a Santo Antônio e até
hoje embirro com mulheres que se
chamam Virgínia, Norma e Elisa.
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