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São Paulo, sexta-feira, 25 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

A emocionante história de um quase naufrágio

Toda vez que tomo conhecimento de um naufrágio, como o recente, em Cabo Frio, encontro um motivo a mais para discordar de Dorival Caymmi: não é doce morrer no mar. Aliás, pensando bem, não é doce morrer em lugar algum, nem mesmo em cima da cama, muito menos em cima de um vulcão, como Silva Jardim, que acabou tragado pela pérfida boca do Vesúvio, monstruosa cratera que de séculos em séculos vomita fogo e soterra cidades.
Como quase todo mundo, tenho também minha história nada heróica, um sufoco passado no mar, não em alto-mar, nem diante dos "infames escrópolos de Acroceráuna" que tanto medo deram a Horácio quando soube que seu amigo Virgílio iria visitar as ilhas gregas para fazer a sua "Eneida". Quase fui ser banquete dos peixes nas águas geralmente mansas e amigas da baía da Guanabara.
Se a história não merece ser contada pela insignificância do cronista, que não faria falta alguma se fosse tragado pelo "mare turgidum", merece ser lembrada por causa do nome, Virnorel, que até hoje não esqueci e levei tempo a saber o que era.
Deu-se que meu primeiro sogro tinha duas lanchas, uma Chris Craft importada, que somente ele usava, e uma outra, produto de fundo de quintal, como a traineira que emborcou em Cabo Frio semana passada. Primitivamente, era um escaler de um navio desativado que apodrecia nas proximidades de Niterói. O primeiro dono comprou-o ou roubou-o, botou bancos novos, calafetou as frestas e instalou um motor de centro, um Chrysler Marine de quatro cilindros, terceira mão, cuja principal qualidade era esquentar e afogar.
Naquele tempo eu era um disponível jogador de futebol de praia, não fazia nada além de jogar peladas e, eventualmente, pescar pelas imediações de Paquetá e Governador, a bordo da tal lancha improvisada e que tinha o nome, também improvisado, de Virnorel.
O mistério durou anos, até que me explicaram: o primitivo dono tinha três filhas, Virgínia, Norma e Elisa. Na impossibilidade de ter três tristes lanchas, ficou quites com as filhas compondo com as primeiras sílabas das três o nome final da embarcação: Vir, nor, el. Certa vez, contei isso ao Antônio Houaiss e ele nem se espantou: disse que mais da metade dos nomes que usamos tiveram composição idêntica ou análoga.
Bem, explicado o nome, explica-se o quase naufrágio. Há no meio da baía, na rota que vai para Paquetá, uma ilha chamada Jurubaíba, que, quando a maré enche, se transforma em duas, passando a ser ilhas de Jurubaíba. Naquele remoto tempo, mereciam o adjetivo que os maus escritores dão sempre às ilhas abandonadas e desertas: paradisíacas. Em sua versão de ilha ou de ilhas, eram realmente paradisíacas, areias brancas, mar límpido e ainda não poluído pelos detritos da Petrobras, que construía um terminal ali perto, na ilha D'Agua, derrubando uma bonita floresta que parecia nascer das ondas já referidas como mansas e amigas.
Enchi a Virnorel de cunhados, primos e vizinhos, ao todo umas 15 pessoas temerárias, que confiaram na Virnorel, que não merecia confiança, e em mim, que merecia menos confiança. Partimos cantando as emoções do mar, que estava liso como a pele do rosto da mulher amada, chegamos às Jurubaíba, que eram duas porque a maré estava baixa. Tomamos banho, improvisamos um churrasco, enfim, fizemos o programa combinado até que começou a soprar o sudoeste. É um vento mau-caráter, relativamente raro na baía, onde sempre sopra o gostoso e pacífico noroeste. Para falar a verdade, eu entendo pouquíssimo de ventos, como nada entendo de nada. Mas sempre ouvira dizer que o sudoeste é traiçoeiro.
As duas ilhas se transformaram em uma, e na impossibilidade de encomendá-la a um timoneiro melhor, encomendei a viagem de volta a Santo Antônio. Quando embiquei a proa para o continente, surpresa, não havia continente, que desaparecera encoberto pelas ondas cada vez mais altas.
Sem bússola, sem estrelas -e mesmo que as tivesse não saberia entendê-las como aquele poeta que ouvia estrelas- joguei toda minha esperança no motor que roncava como um bicho agonizante, ameaçando parar a cada tranco mais forte das ondas.
Não foi no mar, onde nunca aprendi nada, somente a nadar, que me ensinaram uma lei básica: não se deve dar murro em ponta de faca. Adaptando aquela lei às circunstâncias, desconfiei que não adiantava esmurrar as ondas, enfrentando-as com a encarquilhada Virnorel e o esclerosado motor da Chrysler Marine.
Fui bordejando as ondas, que os poetas costumam chamar de vagas, e como não sabia onde era o continente, qualquer outro lugar me servia, desde que não fosse a barra, que me levaria da baía de Guanabara para o oceano Atlântico, o Mar Tenebroso dos navegadores do século 16. E aí eu não estaria aqui escrevendo essas bobagens.
Fui sair a cinco quilômetros do lugar de onde partira. Como os peregrinos que visitam os santuários, todos os passageiros se ajoelharam em terra para agradecer a salvação. Eu cheguei a pensar em mandar construir no local uma capela, mas não tinha nem recursos nem obstinação para isso.
Agradeci a Santo Antônio e até hoje embirro com mulheres que se chamam Virgínia, Norma e Elisa.


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