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"DOMICÍLIO CONJUGAL"
Alter ego de Truffaut chega ao juízo adulto
CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN
Infância ("Os Incompreendidos"), adolescência ("Antoine e Colette), juventude ("Beijos
Proibidos") e, finalmente, vida
adulta. A cada uma dessas fases,
Antoine Doinel, o personagem alter ego do diretor François Truffaut, conseguiu escapar ileso de
grandes compromissos com a seriedade. Em "Domicílio Conjugal", chegou a hora do juízo.
Assim seria se Doinel fosse obrigado a enfrentar as leis da vida
real. Mas o divertido personagem
é criatura de ficção e junto com ela
ganha uma liberdade para agir do
jeito que lhe convém, o que é vetado do lado de cá da tela de cinema.
Truffaut aproveita para mostrar
o quanto se diverte (e os espectadores) em transformar o tédio da
vida conjugal em uma comédia
movida a desacertos.
Seu Doinel, mesmo casado,
adulto e pai, continua fiel a seu
passado original, de desajustado e
rebelde. No início parece que tudo dá certo. O amor é lindo, Doinel vive feliz ao lado de Christine,
mas o tédio o espreita. E Doinel
demonstra, enfim, que continua
sendo um ícone da infância, despreocupado com certezas e entregue ao jogo.
No trabalho, o adulto de Truffaut é uma criança que brinca de
tingir flores ou de guiar miniaturas de navios em uma maquete.
Esse descompromisso de Doinel
em relação às regras da vida "burguesa" (expressão em voga na
época do filme, 1970) leva-o até a
traição amorosa, quando se apaixona por uma garota japonesa.
Depois, revela-se incomodado até
com o ritual da comida japonesa.
Onde há regras, Doinel nunca está
ou está sempre em fuga.
Truffaut aproveita o personagem para exercer uma liberdade
-inclusive narrativa- que o
próprio cinema teve em sua infância e que depois ficou congelada, sob as amarras de códigos, regras e leis a respeito de como uma
história deve ser contada.
A montagem linear é implodida
e dá lugar a agrupamentos de esquetes narrativos aleatórios e repetições que lembram muito Godard ("Pierrot le Fou", "Uma Mulher É uma Mulher") e o próprio
Truffaut ("Jules e Jim"), filmes
emblemáticos da primeira fase da
nouvelle vague.
Aqui, como nesses filmes, seus
diretores foram buscar no fator
burlesco uma alavanca contra
forças demasiado estáveis (o matrimônio, a profissão, o "cinema
de papai" e, no fim das contas, o
próprio poder).
Em Buster Keaton, Charles
Chaplin e Jacques Tati, as gags
criam um efeito subversivo, na
medida em que o espectador acabava dando risadas de si mesmo,
de seus hábitos, de suas crenças.
Em "Domicílio Conjugal", esse
namoro com o burlesco ganha referência ainda mais explícita com
a breve aparição de Tati (não ele
mesmo, mas um de seus dublês),
que cruza com Doinel em uma estação de metrô.
Retrospectivamente, o filme
também pode ser visto como um
momento derradeiro desses jogos
da inocência na obra de Truffaut.
Daí em diante, o cineasta orientou
suas crônicas amorosas na direção de um romantismo mais trágico ("Duas Inglesas e o Amor",
"A História de Adèle H.", "A Mulher do Lado", por exemplo).
Motivo de sobra para rir junto
com ele desse sentimento que
quase sempre é vítima de excesso
de respeito.
Domicílio Conjugal
Domicile Conjugal
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1970
Com: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade,
Daniel Ceccaldi
Quando: a partir de hoje no Top Cine
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