São Paulo, sexta-feira, 25 de maio de 2001

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"DOMICÍLIO CONJUGAL"

Alter ego de Truffaut chega ao juízo adulto

CÁSSIO STARLING CARLOS
EDITOR DO FOLHATEEN

Infância ("Os Incompreendidos"), adolescência ("Antoine e Colette), juventude ("Beijos Proibidos") e, finalmente, vida adulta. A cada uma dessas fases, Antoine Doinel, o personagem alter ego do diretor François Truffaut, conseguiu escapar ileso de grandes compromissos com a seriedade. Em "Domicílio Conjugal", chegou a hora do juízo.
Assim seria se Doinel fosse obrigado a enfrentar as leis da vida real. Mas o divertido personagem é criatura de ficção e junto com ela ganha uma liberdade para agir do jeito que lhe convém, o que é vetado do lado de cá da tela de cinema.
Truffaut aproveita para mostrar o quanto se diverte (e os espectadores) em transformar o tédio da vida conjugal em uma comédia movida a desacertos.
Seu Doinel, mesmo casado, adulto e pai, continua fiel a seu passado original, de desajustado e rebelde. No início parece que tudo dá certo. O amor é lindo, Doinel vive feliz ao lado de Christine, mas o tédio o espreita. E Doinel demonstra, enfim, que continua sendo um ícone da infância, despreocupado com certezas e entregue ao jogo.
No trabalho, o adulto de Truffaut é uma criança que brinca de tingir flores ou de guiar miniaturas de navios em uma maquete. Esse descompromisso de Doinel em relação às regras da vida "burguesa" (expressão em voga na época do filme, 1970) leva-o até a traição amorosa, quando se apaixona por uma garota japonesa. Depois, revela-se incomodado até com o ritual da comida japonesa. Onde há regras, Doinel nunca está ou está sempre em fuga.
Truffaut aproveita o personagem para exercer uma liberdade -inclusive narrativa- que o próprio cinema teve em sua infância e que depois ficou congelada, sob as amarras de códigos, regras e leis a respeito de como uma história deve ser contada.
A montagem linear é implodida e dá lugar a agrupamentos de esquetes narrativos aleatórios e repetições que lembram muito Godard ("Pierrot le Fou", "Uma Mulher É uma Mulher") e o próprio Truffaut ("Jules e Jim"), filmes emblemáticos da primeira fase da nouvelle vague.
Aqui, como nesses filmes, seus diretores foram buscar no fator burlesco uma alavanca contra forças demasiado estáveis (o matrimônio, a profissão, o "cinema de papai" e, no fim das contas, o próprio poder).
Em Buster Keaton, Charles Chaplin e Jacques Tati, as gags criam um efeito subversivo, na medida em que o espectador acabava dando risadas de si mesmo, de seus hábitos, de suas crenças.
Em "Domicílio Conjugal", esse namoro com o burlesco ganha referência ainda mais explícita com a breve aparição de Tati (não ele mesmo, mas um de seus dublês), que cruza com Doinel em uma estação de metrô.
Retrospectivamente, o filme também pode ser visto como um momento derradeiro desses jogos da inocência na obra de Truffaut. Daí em diante, o cineasta orientou suas crônicas amorosas na direção de um romantismo mais trágico ("Duas Inglesas e o Amor", "A História de Adèle H.", "A Mulher do Lado", por exemplo).
Motivo de sobra para rir junto com ele desse sentimento que quase sempre é vítima de excesso de respeito.


Domicílio Conjugal
Domicile Conjugal
    
Direção: François Truffaut
Produção: França, 1970
Com: Jean-Pierre Léaud, Claude Jade, Daniel Ceccaldi
Quando: a partir de hoje no Top Cine




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