São Paulo, sábado, 25 de maio de 2002

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ARTES PLÁSTICAS

Com "Poema Industrial", o artista será o único brasileiro a participar de duas edições da mostra alemã

Cildo Meireles distribui picolés em Kassel

FABIO CYPRIANO
DA REPORTAGEM LOCAL

A partir do próximo dia 8, 12 carrinhos de sorvete estarão circulando pela cidade de Kassel, na Alemanha, distribuindo picolés de água (e só água mesmo) "made in Brasil". A obra, denominada "Poema Industrial", é um projeto do artista plástico Cildo Meireles, um dos 113 escolhidos para compor a 11ª Documenta de Kassel, considerada a mais importante mostra do gênero, que é inaugurada em junho. Todo os equipamentos para a obra são importados do Brasil, dos palitos e embalagens à "picoleteira".
Será a segunda vez, privilégio raro e no Brasil inédito, que Meireles participa da Documenta. A outra foi há dez anos. Nessa 11ª edição, o país está ainda representado por Artur Barrio.
A curadoria está a cargo do nigeriano Okwui Enwezor, primeiro não-europeu a cuidar da exposição. "O Okwui espera distribuir um milhão de picolés, para mim 300 mil já seria ótimo", diz Meireles à Folha.
Ainda não está definido se o picolé será cobrado ou não. O artista brasileiro chega amanhã a Kassel para coordenar a instalação da obra.
Três tipos de picolé serão distribuídos: com palitos azuis, amarelos e verdes. As embalagens são da mesma cor e cada um tem um formato diferente. Nos palitos há duas inscrições: na parte de baixo lê-se "elemento desaparecendo"; depois de se degustar o picolé surge "elemento desaparecido".
"A proposta é trabalhar com a idéia de dissolução e apontar para uma questão, a da água, que apesar dos conflitos étnicos e religiosos atuais, é um tema vital para o planeta", diz Meireles.
Na obra, o artista reforça sua poética em utilizar elementos cotidianos provocando uma "manifestação de tensão e torção", como definiu o curador Paulo Herkenhoff.
"Procuro, sempre que é possível, trabalhar com materiais que tenham uma ambiguidade intrínseca, que sejam símbolo e matéria-prima ao mesmo tempo", afirma Meireles.
A inspiração para "Poema Industrial" tem quase 30 anos. Foi em 1974, em Campinas, cidade próxima a Goiânia, numa rodoviária: "Vi vários moleques vendendo picolés em carrinhos e havia três preços distintos; os mais baratos eram feitos de água", relembra.
A água já esteve presente em outros trabalhos: "Chove Chuva", realizada em 1997, ou "Marulho", do mesmo ano, exposta na Bienal de Johannesburgo, que também teve curadoria de Enwezor. Com a obra preparada para Kassel a água ganha uma dimensão mais ampla, ocupando vários espaços da cidade, o que irá provocar uma "coreografia dos carrinhos", segundo o artista.

O lugar da arte
Tal circulação, aliás, é uma característica de "Poema Industrial" que dá continuidade a obras anteriores do artista: o debate sobre o lugar da arte.
Espalhada pela cidade, de forma acessível e democrática, a obra questiona o mercado da arte e, ao mesmo tempo, os espaços "sacralizados" de exposição.
Com isso, Meireles reforça a proposta política do curador. Pela primeira vez, a mostra alemã apresenta um número significativo de artistas que estão fora do circuito Europa e EUA: são quase 50% do total.
A própria exposição foi antecedida por quatro seminários com temas como "Democracia não-realizada" e "Experimentos com verdade". A expectativa é que temas políticos dominem o cenário artístico de Kassel.
No Brasil, aliás, Meireles tem uma atitude política rara. Negou-se a participar das itinerâncias da Mostra do Redescobrimento e, convidado por Germano Celant, curador do Brasil para a Bienal de Veneza no ano passado, recusou-se a participar por causa da associação BrasilConnects.
"Por favor, me inclua fora disso", costuma responder aos convites da entidade, parafraseando o ex-jogador de futebol Dadá Maravilha.



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