São Paulo, sábado, 25 de junho de 2005

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País enraivecido emerge dos "Contos Negreiros"

DA REPORTAGEM LOCAL

A queixa de um negro que assalta no farol e, preso, é impedido de retornar ao barraco e beijar as crianças. "Violência é a gente naquele sol e o cara dentro do ar-condicionado uma duas três horas quatro esperando uma melhor oportunidade de a gente enfiar o revólver na cara do cara plac." A queixa do impedido de vender o rim, seu próprio rim, por R$ 10 mil. "Por que não cuidam eles deles, ora essa?" A queixa da mulata de Recife, que sente falta dos alemães que chegavam todas as tardes para levá-la a rodar restaurantes, hotéis, camas d'água. "Menos pior que essa vida de bosta arrependida."
Queixas, discursos, teimosias, ladainhas. Essa é a arte do pernambucano de cabeça quente Marcelino Freire, que lança em julho, pela Record, seus enraivecidos "Contos Negreiros". Lembranças de sua mãe, sertaneja de Sertânia, a cantar Luiz Gonzaga quando contente, e a bater panelas quando brava, quando indignada com suas misérias. De Gonzaga ou das panelas surgiram esses cantos, brados entoados por personagens de pouca fortuna.
"Essa coisa sertaneja da minha mãe falando o tempo todo, isso aí ficou marcado na minha prosa desde os primeiros livros que publiquei", explicita Freire. "Nordestino é de se queixar muito. E me interessa porque é som e é a partir dele que vou dizendo as coisas que me incomodam."
Dizer o que incomoda: é dessa forma que as histórias se sucedem, negro trás negro, branco trás negro, negro trás negra trás branco. Histórias rápidas, curtas. "Em tudo na arte, todos os artistas, em toda arte, eu gosto dos que dizem imediatamente o que querem e vão embora, pelo amor de Deus", declara Freire.
Um livro abolicionista em pleno início de novo milênio. No conto "Trabalhadores do Brasil", a questão ganha caráter explícito e ironia fina: "Ninguém aqui é escravo de ninguém", e aí termina. Mas quem serão esses ninguéns?
O trabalho mal ou nunca pago, o abuso policial, o comércio sexual. Retratos de um Brasil tantas vezes retratado. E o próprio Freire vê-se enredado nessa mesma trama, embora talvez em seu ramo mais nobre. É também ele um escravo, mas da literatura, que muito o requer e pouco lhe paga.
Dominadores e dominados, essa é a temática que o atrai. Atrai, não, que o toma de assalto. E é preciso exorcizar, livrar-se do que o invadiu, compartilhar o que ouviu, tomar também de assalto ele mesmo. "Tem uma nervura ali, de todo mundo, um desencontro, uma doença geral."
De resto, no entanto, se sobressai o humor, e a certeza de que ler seus contos não será tão penoso quanto vivê-los. "É, tem uma coisa do riso nervoso. Gosto desse humor que desorienta. É o rir do absurdo a que se chegou." (JF)


Contos Negreiros
Autor:
Marcelino Freire
Editora: Record
Quanto: R$ 21,50 (110 págs.)


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