São Paulo, sábado, 25 de junho de 2005

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RODAPÉ

O tempo perdido e a câmara escura

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA

À pergunta de Marcel Proust sobre a natureza de uma lembrança-fantasma, da qual não mais nos recordamos, Brassaï (1899-1984) responde com uma metáfora iluminadora: a de uma fotografia jamais revelada. Espírito irrequieto, um dos grandes fotógrafos da Paris festiva dos anos 20, companheiro de noite de Henri Michaux, Henry Miller, Jacques Prévert, Raymond Queneau, o húngaro Gyula Halasz, cujo pseudônimo ecoa a Brasso nativa, dedicou seus últimos anos a um ensaio que revela as pontes entre a obra proustiana e o processo fotográfico. Filho de um professor de literatura francesa, Brassaï era mais do que um escritor bissexto, batizado e confirmado pelo apuro de suas "Conversas com Picasso" (1964).
Em "Proust e a Fotografia", pequeno volume recém-lançado pela editora Jorge Zahar, que inclui reproduções de 16 de suas fotos, Brassaï não se restringe a historiar o interesse pessoal, obsessivo, do autor de "Em Busca do Tempo Perdido" por acumular e analisar registros fotográficos.
Hábito de classe reforçado por herança familiar, sua coleção de retratos cresceu descomunalmente, alimentada pelos expedientes mais diversos. Marcel Proust rendeu-se, ele próprio, repetidas vezes ao ritual da pose, não hesitando, para obter clichês dos amigos, em recorrer à chantagem emocional, aos pedidos indiscretos e, até mesmo, à subtração não consentida.
O livro tampouco se limita ao mapeamento das muitas e decisivas passagens, em que, na obra, essa idéia fixa se transforma em tema ou objeto de reflexão para o narrador e suas personagens. Para além destes aspectos, cuja importância demonstra e documenta fartamente, Brassaï concentrou-se na busca pelas marcas profundas da então incipiente técnica, arte insegura de seu estatuto, no processo de criação proustiano.
Mostra como o processo químico de revelação das chapas sensibilizadas, trazendo à luz as imagens latentes, corresponde ao esforço do escritor em reavivar experiências e emoções sepultadas no esquecimento. A memória involuntária toma o lugar da reclusão solitária na câmara escura e o escritor, o de revelador.
A fotografia aparece como coadjuvante de peso na formulação da equação proustiana, pois, fixando sem matar o instante, retendo o movimento em potência contida, mas explosiva, ajuda a domar o "monstro de duas cabeças, danação e salvação" (Beckett) que habita o coração da "Busca do Tempo Perdido": o Tempo. Para além do perspectivismo implícito nos aspectos técnicos da focalização, da variação dos pontos de vista, da troca de lentes, é o resultado do processo -o instantâneo- que aponta para a mobilidade do sujeito, permitindo um confronto repetido, e nunca idêntico, em motivação ou investimento afetivo, com partes de si, enterradas no passado.
Talvez nenhuma das passagens selecionadas por Brassaï seja tão paradigmática destes vários pontos de contato entre Proust e a fotografia quanto as que se ordenam em torno do episódio em que a avó do narrador, em férias no Grande Hotel de Balbec, aparentemente por insistência da criada, Françoise, deixa-se retratar por seu amigo Saint-Loup. Irritado com o surto inesperado de vaidade extemporânea e incomum na velha senhora, Marcel dispara comentários irônicos que resultam num rosto crispado, evidente na foto.
Muito depois, de volta a Balbec, no primeiro aniversário de morte da avó, com aquele retrato em mãos, pela primeira vez o narrador dá-se conta efetiva do seu desaparecimento, cobrindo-se de culpa. A mesma criada, observando-o mergulhado na contemplação, agrava inconscientemente sua dor, ao revelar que a avó, já muito doente, mas ocultando o fato ao neto, fizera-se fotografar por Saint-Loup para deixar-lhe uma lembrança, temendo a morte próxima.
Aqui, no jogo de enganos e motivações cambiantes, na ironia involuntária, o escritor encontra um duplo de si no fotógrafo, inscrevendo no tempo a falibilidade humana, elevando-a à consciência pela forma.


Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço

Proust e a Fotografia
    
Autor: Brassaï
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (184 págs.)


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