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RODAPÉ
O tempo perdido e a câmara escura
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
COLUNISTA DA FOLHA
À pergunta de Marcel
Proust sobre a natureza de
uma lembrança-fantasma, da
qual não mais nos recordamos,
Brassaï (1899-1984) responde
com uma metáfora iluminadora:
a de uma fotografia jamais revelada. Espírito irrequieto, um dos
grandes fotógrafos da Paris festiva
dos anos 20, companheiro de noite de Henri Michaux, Henry Miller, Jacques Prévert, Raymond
Queneau, o húngaro Gyula Halasz, cujo pseudônimo ecoa a
Brasso nativa, dedicou seus últimos anos a um ensaio que revela
as pontes entre a obra proustiana
e o processo fotográfico. Filho de
um professor de literatura francesa, Brassaï era mais do que um escritor bissexto, batizado e confirmado pelo apuro de suas "Conversas com Picasso" (1964).
Em "Proust e a Fotografia", pequeno volume recém-lançado pela editora Jorge Zahar, que inclui
reproduções de 16 de suas fotos,
Brassaï não se restringe a historiar
o interesse pessoal, obsessivo, do
autor de "Em Busca do Tempo
Perdido" por acumular e analisar
registros fotográficos.
Hábito de classe reforçado por
herança familiar, sua coleção de
retratos cresceu descomunalmente, alimentada pelos expedientes mais diversos. Marcel
Proust rendeu-se, ele próprio, repetidas vezes ao ritual da pose,
não hesitando, para obter clichês
dos amigos, em recorrer à chantagem emocional, aos pedidos indiscretos e, até mesmo, à subtração não consentida.
O livro tampouco se limita ao
mapeamento das muitas e decisivas passagens, em que, na obra,
essa idéia fixa se transforma em
tema ou objeto de reflexão para o
narrador e suas personagens. Para além destes aspectos, cuja importância demonstra e documenta fartamente, Brassaï concentrou-se na busca pelas marcas
profundas da então incipiente
técnica, arte insegura de seu estatuto, no processo de criação
proustiano.
Mostra como o processo químico de revelação das chapas sensibilizadas, trazendo à luz as imagens latentes, corresponde ao esforço do escritor em reavivar experiências e emoções sepultadas
no esquecimento. A memória involuntária toma o lugar da reclusão solitária na câmara escura e o
escritor, o de revelador.
A fotografia aparece como
coadjuvante de peso na formulação da equação proustiana, pois,
fixando sem matar o instante, retendo o movimento em potência
contida, mas explosiva, ajuda a
domar o "monstro de duas cabeças, danação e salvação" (Beckett)
que habita o coração da "Busca do
Tempo Perdido": o Tempo. Para
além do perspectivismo implícito
nos aspectos técnicos da focalização, da variação dos pontos de
vista, da troca de lentes, é o resultado do processo -o instantâneo- que aponta para a mobilidade do sujeito, permitindo um
confronto repetido, e nunca idêntico, em motivação ou investimento afetivo, com partes de si,
enterradas no passado.
Talvez nenhuma das passagens
selecionadas por Brassaï seja tão
paradigmática destes vários pontos de contato entre Proust e a fotografia quanto as que se ordenam em torno do episódio em
que a avó do narrador, em férias
no Grande Hotel de Balbec, aparentemente por insistência da
criada, Françoise, deixa-se retratar por seu amigo Saint-Loup. Irritado com o surto inesperado de
vaidade extemporânea e incomum na velha senhora, Marcel
dispara comentários irônicos que
resultam num rosto crispado, evidente na foto.
Muito depois, de volta a Balbec,
no primeiro aniversário de morte
da avó, com aquele retrato em
mãos, pela primeira vez o narrador dá-se conta efetiva do seu desaparecimento, cobrindo-se de
culpa. A mesma criada, observando-o mergulhado na contemplação, agrava inconscientemente
sua dor, ao revelar que a avó, já
muito doente, mas ocultando o
fato ao neto, fizera-se fotografar
por Saint-Loup para deixar-lhe
uma lembrança, temendo a morte
próxima.
Aqui, no jogo de enganos e motivações cambiantes, na ironia involuntária, o escritor encontra
um duplo de si no fotógrafo, inscrevendo no tempo a falibilidade
humana, elevando-a à consciência pela forma.
Fábio de Souza Andrade escreve quinzenalmente neste espaço
Proust e a Fotografia
Autor: Brassaï
Tradução: André Telles
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (184 págs.)
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