VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

Na atual temporada de teatro em São Paulo, a simultaneidade de espetáculos de Antunes Filho, Gerald Thomas e José Celso Martinez Corrêa projeta um corpo como receptáculo do terror contemporâneo. Um sentido de urgência manifestado por meio do corpo sujeito, corpo coletivo e político.
Pisando o barro brasileiro, Zé Celso e grupo Oficina Uzyna Uzona penetram as páginas mais trágicas de "Os Sertões", de Euclides da Cunha, nas quais se reporta o massacre histórico de Canudos -primeiras incursões da recém-instaurada República pela barbárie, hoje escancarada.
No espetáculo "A Luta: Primeira Parte", desenrolam-se três expedições do Exército, todas derrotadas pelos sertanejos seguidores de Antonio Conselheiro. O "teatro de guerra" montado no terreiro do Oficina colhe a matança dos dois lados. Canhões, espingardas, facões: o armagedon explode. São muitos os corpos tombados ao longo da encenação.
Na última seqüência, o coronel Tamarindo tem seu corpo empalado, atravessado por um ferro, um "varapau", num ritual dos jagunços. Seu "fantasma" surge dependurado em praça pública, espantalho agonizante a prenunciar os dias piores que virão.
A "Antígona" de Antunes calha com a assepsia a que chegamos. Escrita na Grécia de 2.500 anos atrás, a peça de Sófocles abre com dois cadáveres insepultos: o de Etéocles e o de Polinices, irmãos de Antígona que duelaram até a morte. A protagonista exige o enterro de um deles, Etéocles, excomungado por Creonte, o rei de Tebas. Esses corpos atrairão outros, tragédia adentro. Eles são representados por bonecos retalhados ou por caveiras que dançam ao final abraçadas às Bacantes, aqui convertidas em carpideiras sapateando sobre a lápide do século 21 no cemitério-cenário.
Em "Um Circo de Rins e Fígados", Thomas dá pistas de que o protagonista que criou, um certo João do Paradeiro, seria um traficante de órgãos. Essa mercantilização de pedaços de um ser não constituirá mais um soco no estômago, pois moeda corrente na nova desordem financeira do crime organizado.
Mais adiante, Paradeiro surge como funcionário de um instituto médico legal. Acaba detido. Entre as acusações, necrofilia. Ele descreve seus atos noturnos a um delegado. O policial levará o sujeito até o necrotério. Pede para que se curve, uma vez mais, ao "objeto do desejo" que jaz de bruços, nu. Tudo ao bel-prazer do delegado voyeur.
Para arrematar, no que talvez insinue como decrepitudes física e moral da sociedade, Thomas coloca um ator entre os espectadores, um personagem-cadáver entre os vivos. Retrato da mumificação da platéia entre risos?
A despeito disso, na "Antígona" de Antunes, a princesa originalmente presa numa caverna, onde é enterrada viva sob pedras, aparece no centro do palco envolta em panos, amarrada por cordas, imóvel sob uma velha cadeira de rodas. Assombrosa imagem da liberdade a caminho do cadafalso.
Os três encenadores expõem, por meio do corpo-texto, a desvalorização da vida; não há espaço para as pompas fúnebres.
O noticiário de crime domina os meios de comunicação e denota a "banalização" do corpo, violentado em todos os sentidos. Vide imagens de presos iraquianos torturados por soldados norte-americanos em Fallujah; de atentados suicidas por homens e mulheres-bomba no Oriente Médio; de atos de decapitação na Febem ou presídios do Estado mais rico do país.
Essa cabeça separada do corpo, como o foram em Canudos, onde eram exibidas como prêmio, traduz o mal-estar.