São Paulo, sábado, 25 de junho de 2005

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CRÍTICA

Pia Fraus resgata a dignidade da tragédia com "Olhos Vermelhos"

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Para que uma tragédia funcione no palco, é preciso um alto grau de depuração. Exige-se técnica dos atores, pois não basta o espontâneo e o verossímil, mas do público também se exige uma maior concentração, já que precisa superar o hábito de "torcer" pelo personagem.
Assim, a tragédia de Antígona não pode ser banalizada em um conflito individual entra a filha rebelde de Édipo querendo enterrar o irmão traidor da pátria e seu tio Creonte, responsável por impor a autoridade do Estado. A tragédia trata da descoberta de uma condição humana terrível, a de ter que pôr um princípio ético acima da auto-preservação. Situação recorrente na história, que sempre atualiza a trama de Sófocles.
O grupo Pia Fraus, que há 20 anos pesquisa uma síntese entre teatro, dança, artes plásticas e animação de bonecos, tem todos os instrumentos necessários para dar conta do desafio. Atrai a atenção do público com a isca da sofisticada direção de arte de Beto Lima, entre o lúdico e o arquetípico, a vanguarda e o popular. Mas logo o fisga com o despojamento da trama, reduzida ao essencial sem hermetismos nem banalizações por Lima e Beto Andretta.
A inteligência da direção de Ione de Medeiros foi a de conduzir a criação dos atores-manipuladores até um espetáculo acessível e mobilizador. As soluções cênicas, muitas vezes inesperadas, mas sempre eficientes, tocam em feridas com extrema delicadeza.
Crueldade e puerilidade se completam: a guerra é uma coreografia grotesca de cornos, ou um demiurgo destruindo cavalinhos-de-pau com a gravidade das crianças. Por outro lado, uma tampa de mesa é levantada e surge o coro, rostos de madeira, e vozes ecoam pela sala a perplexidade da população.
Desarmado assim por essa ingenuidade, o público deixa de sofrer e passa a refletir. Atenuada, a sucessão de mortes (o sacrifício de Antígona e de Hémon, a morte de Eurídice) se torna um fato a ser encarado, não um pretexto para a demonstração de sentimentos por parte da atuação.
Os atores sabem contrastar a grandiloqüência da imagem com uma sobriedade de tom, conquistando nesse espetáculo a palavra falada, sem nenhum maneirismo. O desenho corporal estabelecido por Ricardo Iazzetta, que também manipula Antígona, junto do belo canto inicial de Isabella Graef, garante o estranhamento necessário para sublimar a emoção.
Mas o trunfo da montagem é o desdobramento concreto do personagem entre boneco e manipulador, segundo a técnica japonesa do bunraku, que, não ocultando totalmente aquele que anima o personagem, acaba chegando a uma metafísica no teatro de bonecos.
Compreende-se, a partir desse recurso, com rara clareza a posição de Creonte, cuja função em geral se limita a ressaltar a dignidade da desobediência civil de Antígona, através da concentrada atuação de Eugênio La Salvia. O rosto do manipulador se comove, arrasado pelas desgraças que seu erro proporcionou, mas o boneco se retira impávido, denunciando seu transtorno apenas pela lentidão de movimento.
A excelência deste espetáculo, infelizmente, tem ecoado por platéias vazias demais nesta temporada, o que, com a perda do mentor Beto Lima, acaba esmorecendo um pouco a sua energia. Mas é bem recompensado aquele que enfrenta a truculência dos guardadores de carro para chegar ao Tucarena, um teatro bonito e com uma programação bem cuidada.
Espera-se que o destino do Pia Fraus sem Lima seja o mesmo do Lume sem Luis Otávio Burnier: não desanimar nunca. "É terrível ceder", diz Antígona. O Pia Fraus mantém a cabeça erguida.


Olhos Vermelhos - Um Tributo a Antígona
    
Quando: sáb., às 21h, dom., às 19h; até 31/7
Onde: Tucarena (r. Monte Alegre, 1.024, Perdizes, tel. 0/xx/11/3864-3327)
Quanto: R$ 25


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