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CRÍTICA
Pia Fraus resgata a dignidade da tragédia com "Olhos Vermelhos"
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Para que uma tragédia funcione no palco, é preciso um
alto grau de depuração. Exige-se
técnica dos atores, pois não basta
o espontâneo e o verossímil, mas
do público também se exige uma
maior concentração, já que precisa superar o hábito de "torcer"
pelo personagem.
Assim, a tragédia de Antígona
não pode ser banalizada em um
conflito individual entra a filha rebelde de Édipo querendo enterrar
o irmão traidor da pátria e seu tio
Creonte, responsável por impor a
autoridade do Estado. A tragédia
trata da descoberta de uma condição humana terrível, a de ter que
pôr um princípio ético acima da
auto-preservação. Situação recorrente na história, que sempre
atualiza a trama de Sófocles.
O grupo Pia Fraus, que há 20
anos pesquisa uma síntese entre
teatro, dança, artes plásticas e animação de bonecos, tem todos os
instrumentos necessários para
dar conta do desafio. Atrai a atenção do público com a isca da sofisticada direção de arte de Beto Lima, entre o lúdico e o arquetípico,
a vanguarda e o popular. Mas logo
o fisga com o despojamento da
trama, reduzida ao essencial sem
hermetismos nem banalizações
por Lima e Beto Andretta.
A inteligência da direção de Ione de Medeiros foi a de conduzir a
criação dos atores-manipuladores até um espetáculo acessível e
mobilizador. As soluções cênicas,
muitas vezes inesperadas, mas
sempre eficientes, tocam em feridas com extrema delicadeza.
Crueldade e puerilidade se completam: a guerra é uma coreografia grotesca de cornos, ou um demiurgo destruindo cavalinhos-de-pau com a gravidade das
crianças. Por outro lado, uma
tampa de mesa é levantada e surge o coro, rostos de madeira, e vozes ecoam pela sala a perplexidade da população.
Desarmado assim por essa ingenuidade, o público deixa de sofrer
e passa a refletir. Atenuada, a sucessão de mortes (o sacrifício de
Antígona e de Hémon, a morte de
Eurídice) se torna um fato a ser
encarado, não um pretexto para a
demonstração de sentimentos
por parte da atuação.
Os atores sabem contrastar a
grandiloqüência da imagem com
uma sobriedade de tom, conquistando nesse espetáculo a palavra
falada, sem nenhum maneirismo.
O desenho corporal estabelecido
por Ricardo Iazzetta, que também
manipula Antígona, junto do belo
canto inicial de Isabella Graef, garante o estranhamento necessário
para sublimar a emoção.
Mas o trunfo da montagem é o
desdobramento concreto do personagem entre boneco e manipulador, segundo a técnica japonesa
do bunraku, que, não ocultando
totalmente aquele que anima o
personagem, acaba chegando a
uma metafísica no teatro de bonecos.
Compreende-se, a partir desse
recurso, com rara clareza a posição de Creonte, cuja função em
geral se limita a ressaltar a dignidade da desobediência civil de
Antígona, através da concentrada
atuação de Eugênio La Salvia. O
rosto do manipulador se comove,
arrasado pelas desgraças que seu
erro proporcionou, mas o boneco
se retira impávido, denunciando
seu transtorno apenas pela lentidão de movimento.
A excelência deste espetáculo,
infelizmente, tem ecoado por platéias vazias demais nesta temporada, o que, com a perda do mentor Beto Lima, acaba esmorecendo um pouco a sua energia. Mas é
bem recompensado aquele que
enfrenta a truculência dos guardadores de carro para chegar ao
Tucarena, um teatro bonito e com
uma programação bem cuidada.
Espera-se que o destino do Pia
Fraus sem Lima seja o mesmo do
Lume sem Luis Otávio Burnier:
não desanimar nunca. "É terrível
ceder", diz Antígona. O Pia Fraus
mantém a cabeça erguida.
Olhos Vermelhos - Um Tributo a Antígona
Quando: sáb., às 21h, dom., às 19h; até
31/7
Onde: Tucarena (r. Monte Alegre, 1.024,
Perdizes, tel. 0/xx/11/3864-3327)
Quanto: R$ 25
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