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COMIDA
Receitas do altiplano boliviano atraem paladares aventureiros à feira da Kantuta, no Pari, em SP
Sabores Andinos
GABRIELA LONGMAN
DA REPORTAGEM LOCAL
Quase uma volta ao mundo de
sabores está não só nos restaurantes paulistanos. Das levas de imigrantes do passado, a cidade recebeu de presente duas feiras que
celebram a democracia do gosto
-a semanal da Liberdade e a
anual da Achiropita. Os imigrantes de hoje, ao fincar raízes, vêm
enriquecer também a pluralidade
de paladares oferecidos aos paulistanos na versão "comidas-típicas-vendidas-em-barraquinhas-na-rua".
Faz já mais de um ano que a feira da comunidade boliviana se estabeleceu em torno de uma praça
na rua das Olarias, no bairro do
Pari. Com apoio da prefeitura, o
evento foi regularizado, ganhou
adeptos e fez com que a praça fosse rebatizada como Kantuta
-flor que cresce a mais de 3.000
metros de altitude na cordilheira
dos Andes e que, para os bolivianos, simboliza a esperança.
A distância até a feira da Kantuta vale a viagem: ali estão reunidas
cerca de 90 barracas com ingredientes básicos de qualquer evento no gênero- música típica, jogos para criança e, sobretudo,
atrações relacionadas à gastronomia andina.
As barracas de comida dividem-se em duas grandes frentes,
situadas em lados opostos da praça: aquelas que vendem ingredientes importados -grãos, ervas, pães- e as que servem pratos já preparados, bastando ao
freguês apenas sentar e comer.
Mas, afinal, o que se come na
Bolívia? Para os paladares menos
familiarizados, talvez seja interessante começar pelas salteñas, espécie de empanadas assadas, feitas com carne ou frango e tempero apimentado. A barraca de Don
Carlos, boliviano nascido em La
Paz, é uma das mais tradicionais.
Para os que já conhecem salteñas, pode soar interessante aventurar-se pela variedade de pratos
principais. As tendas de lona
branca -decoradas com os tons
de verde, vermelho e amarelo da
bandeira- disputam fregueses
com cartazes como "Hoy se sirve
chincharron" (hoje, carne de porco), "fricassê de pescados" e o famoso "falso conejo" (carne de boi
ensopada, temperada como se
fosse carne de coelho). Especialidades mais simples como "pollo
al horno" (frango no forno) podem matar a fome das crianças.
Como acompanhamento para
as carnes, haverá sempre batatas,
e não é raro encontrar boa variedade de sopas, caldos e cozidos
temperados com ervas inusitadas
ao paladar. Muitos dos pratos levam o aji, espécie de pimenta
amarela vendida em pó, mas que
originalmente tem formato de dedo-de-moça e aspecto ressecado.
Como remédio para sede, sempre é possível adotar a solução
"moderada" e pedir um refrigerante. Para obter o diploma boliviano, porém, é preciso respirar
fundo e tomar "chicha de mani",
espécie de refresco de amendoim
fermentado que não lembra absolutamente nada visto por aqui.
Com algum esforço, poderia traduzi-la como "suco de paçoca".
Como é de costume nas feiras típicas, os preços não assustam:
pratos bem servidos custam entre
R$ 5 e R$ 15, com o possível desconforto de comer com pratos e
talheres de plástico (relaxe, você
está na Bolívia!).
Matéria-prima
Do lado oposto às tendas de comida, é possível comprar os ingredientes e se aventurar na cozinha. Procurando com cuidado, as
barracas revelam diferentes espécies de milho, com grãos que chegam a ter duas vezes o tamanho
do milho brasileiro.
Alicia Flores, 53, é outra boliviana vivendo em São Paulo -são
cerca de 31 mil imigrantes cadastrados pelo consulado, embora
estimativas apontem para até 80
mil na capital. Dona de uma das
barracas mais fartas da feira, a senhora mantém, durante a semana, um pequeno armazém de ingredientes importados.
Quando começou com o negócio, a própria Alicia viajava mensalmente a La Paz para buscar os
produtos, cruzando a fronteira
através de Corumbá (MS). "Hoje
já estou mais velha e tenho fornecedores nos quais posso confiar",
conta ela, que, entre outras atividades, escreve um livro sobre como incluir a quinua (cereal cultivado desde o período incaico) na
alimentação. Além de grãos e legumes, sua barraca vende produtos industrializados, como a cerveja Paceña (R$ 3, a lata).
Cliente fiel de Alicia e de toda a
feira, Ignácio Artigas, 49, nasceu
em Cochabamba e vem de Juiz de
Fora (MG) para fazer compras na
Kantuta. "É mais perto do que ir
até a fronteira", brinca.
Falando em fronteira, quem foi
à Bolívia poderá usar a Kantuta
para se lembrar de todos os sabores, à exceção do mais famoso: o
chá de coca. A entrada das folhas é
proibida pela legislação brasileira,
o que faz com que os feirantes tenham que vender apenas os sachês industrializados, produzidos
para exportação.
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