São Paulo, quinta-feira, 25 de agosto de 2005

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COMIDA

Receitas do altiplano boliviano atraem paladares aventureiros à feira da Kantuta, no Pari, em SP

Sabores Andinos

GABRIELA LONGMAN
DA REPORTAGEM LOCAL

Quase uma volta ao mundo de sabores está não só nos restaurantes paulistanos. Das levas de imigrantes do passado, a cidade recebeu de presente duas feiras que celebram a democracia do gosto -a semanal da Liberdade e a anual da Achiropita. Os imigrantes de hoje, ao fincar raízes, vêm enriquecer também a pluralidade de paladares oferecidos aos paulistanos na versão "comidas-típicas-vendidas-em-barraquinhas-na-rua".
Faz já mais de um ano que a feira da comunidade boliviana se estabeleceu em torno de uma praça na rua das Olarias, no bairro do Pari. Com apoio da prefeitura, o evento foi regularizado, ganhou adeptos e fez com que a praça fosse rebatizada como Kantuta -flor que cresce a mais de 3.000 metros de altitude na cordilheira dos Andes e que, para os bolivianos, simboliza a esperança.
A distância até a feira da Kantuta vale a viagem: ali estão reunidas cerca de 90 barracas com ingredientes básicos de qualquer evento no gênero- música típica, jogos para criança e, sobretudo, atrações relacionadas à gastronomia andina.
As barracas de comida dividem-se em duas grandes frentes, situadas em lados opostos da praça: aquelas que vendem ingredientes importados -grãos, ervas, pães- e as que servem pratos já preparados, bastando ao freguês apenas sentar e comer.
Mas, afinal, o que se come na Bolívia? Para os paladares menos familiarizados, talvez seja interessante começar pelas salteñas, espécie de empanadas assadas, feitas com carne ou frango e tempero apimentado. A barraca de Don Carlos, boliviano nascido em La Paz, é uma das mais tradicionais.
Para os que já conhecem salteñas, pode soar interessante aventurar-se pela variedade de pratos principais. As tendas de lona branca -decoradas com os tons de verde, vermelho e amarelo da bandeira- disputam fregueses com cartazes como "Hoy se sirve chincharron" (hoje, carne de porco), "fricassê de pescados" e o famoso "falso conejo" (carne de boi ensopada, temperada como se fosse carne de coelho). Especialidades mais simples como "pollo al horno" (frango no forno) podem matar a fome das crianças.
Como acompanhamento para as carnes, haverá sempre batatas, e não é raro encontrar boa variedade de sopas, caldos e cozidos temperados com ervas inusitadas ao paladar. Muitos dos pratos levam o aji, espécie de pimenta amarela vendida em pó, mas que originalmente tem formato de dedo-de-moça e aspecto ressecado.
Como remédio para sede, sempre é possível adotar a solução "moderada" e pedir um refrigerante. Para obter o diploma boliviano, porém, é preciso respirar fundo e tomar "chicha de mani", espécie de refresco de amendoim fermentado que não lembra absolutamente nada visto por aqui. Com algum esforço, poderia traduzi-la como "suco de paçoca".
Como é de costume nas feiras típicas, os preços não assustam: pratos bem servidos custam entre R$ 5 e R$ 15, com o possível desconforto de comer com pratos e talheres de plástico (relaxe, você está na Bolívia!).

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Do lado oposto às tendas de comida, é possível comprar os ingredientes e se aventurar na cozinha. Procurando com cuidado, as barracas revelam diferentes espécies de milho, com grãos que chegam a ter duas vezes o tamanho do milho brasileiro.
Alicia Flores, 53, é outra boliviana vivendo em São Paulo -são cerca de 31 mil imigrantes cadastrados pelo consulado, embora estimativas apontem para até 80 mil na capital. Dona de uma das barracas mais fartas da feira, a senhora mantém, durante a semana, um pequeno armazém de ingredientes importados.
Quando começou com o negócio, a própria Alicia viajava mensalmente a La Paz para buscar os produtos, cruzando a fronteira através de Corumbá (MS). "Hoje já estou mais velha e tenho fornecedores nos quais posso confiar", conta ela, que, entre outras atividades, escreve um livro sobre como incluir a quinua (cereal cultivado desde o período incaico) na alimentação. Além de grãos e legumes, sua barraca vende produtos industrializados, como a cerveja Paceña (R$ 3, a lata).
Cliente fiel de Alicia e de toda a feira, Ignácio Artigas, 49, nasceu em Cochabamba e vem de Juiz de Fora (MG) para fazer compras na Kantuta. "É mais perto do que ir até a fronteira", brinca.
Falando em fronteira, quem foi à Bolívia poderá usar a Kantuta para se lembrar de todos os sabores, à exceção do mais famoso: o chá de coca. A entrada das folhas é proibida pela legislação brasileira, o que faz com que os feirantes tenham que vender apenas os sachês industrializados, produzidos para exportação.


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