|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
FESTIVAL DO RIO
Diretor, que subverteu dogmas do cinema norte-americano, ganha retrospectiva na mostra carioca
Pelo "character", Welles defende o humano
TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA
Orson Welles (1915-85), cuja
retrospectiva é um dos destaques do Festival do Rio 2003
(leia texto ao lado), gostava de
contar uma velha fábula árabe em
seus filmes: o escorpião pede carona para a rã a fim de atravessar
o rio. Esta o faz prometer que não
irá picá-la. No meio da travessia,
porém, a rã sente a picada e, morrendo, pergunta ao escorpião por
que a matara se, assim, também
morreria afogado. "Porque é do
meu caráter", responde o outro.
Fundamental nessa história é
saber o que Welles entende como
"caráter" ("character"). Numa
entrevista nos anos 50, Welles elucidava: ""Character" é a maneira
como nos comportamos quando
nos recusamos às leis a que devemos obedecer, aos sentimentos
que experimentamos; é a maneira
como nos comportamos em presença da vida e diante da morte".
Esse "character" não é muito diferente do que Nietzsche chamava
de "vontade de potência".
Todos os (faustianos) personagens que Welles encarnava como
ator, especialmente os de seus
próprios filmes, tinham "character". Welles tinha muita afeição
por eles, mas os detestava moralmente. A relevância de sua obra se
encontra, em boa medida, aí: seu
juízo sobre os personagens não
prevaleceu sobre sua afeição. Ao
substituir a moralidade pelo encanto, subverteu o dogma central
do cinema clássico americano.
Essa distinção entre juízo e afeto, em Welles, deixou a crítica
muitas vezes confusa. Quando
ainda era crítico, François Truffaut escreveu um artigo sobre "A
Marca da Maldade" em que descrevia o personagem do policial
interpretado por Welles, Quinlan,
como um gênio incapaz de se impedir de fazer o mal. Em nome de
Welles, Truffaut chegava mesmo
a defender a atitude de Quinlan,
sua maneira de fazer justiça pelas
próprias mãos. Welles se viu obrigado a esclarecer: não era a favor
dos abusos policiais e, sobretudo,
não compartilhava das idéias de
Quinlan. Apenas não podia deixar de, humanamente, simpatizar
com ele, com seu "character".
Quinlan é um escorpião (assim
como Arkadin, Bannister e Iago),
e Vargas, o personagem do policial correto interpretado por
Charlton Heston, é uma rã (como
Otelo), isto é, alguém que acredita
em contratos sociais e em valores
superiores. A personagens como
Vargas, "homens verídicos" (que
se acreditam portadores da verdade e se arvoram o direito de julgar), personagens típicos do cinema americano, Welles não se cansará de mostrar que não existem
valores superiores à vida.
À obsessão dos americanos pelo
julgamento, Welles responderá
com seus personagens não julgáveis e com cenas de tribunal em
que (como em "A Dama de Shangai" e "O Processo") a impostura
reina. Como notara o filósofo Gilles Deleuze, Welles fez pelo cinema americano o que Nietzsche
havia feito pela filosofia: destronar-lhe o ideal de verdade.
Em vez desse ideal, a metamorfose do verdadeiro. Tomando de
Shakespeare, seu predileto, a potência metamórfica dos personagens, Welles criou, para o lugar
dos velhos "homens verídicos" do
cinema americano, uma série de
falsários enigmáticos: Kane, Arkadin, Bannister, Quinlan. Série
que culmina e prolifera (por uma
espécie de multiplicidade do falso) em "F for Fake" ("F de Falso").
Texto Anterior: Satyros comemoram a primavera por 78 horas Próximo Texto: Festival exibe quase 300 filmes em 37 telas Índice
|