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São Paulo, quinta-feira, 25 de setembro de 2003

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FESTIVAL DO RIO

Diretor, que subverteu dogmas do cinema norte-americano, ganha retrospectiva na mostra carioca

Pelo "character", Welles defende o humano

TIAGO MATA MACHADO
CRÍTICO DA FOLHA

Orson Welles (1915-85), cuja retrospectiva é um dos destaques do Festival do Rio 2003 (leia texto ao lado), gostava de contar uma velha fábula árabe em seus filmes: o escorpião pede carona para a rã a fim de atravessar o rio. Esta o faz prometer que não irá picá-la. No meio da travessia, porém, a rã sente a picada e, morrendo, pergunta ao escorpião por que a matara se, assim, também morreria afogado. "Porque é do meu caráter", responde o outro.
Fundamental nessa história é saber o que Welles entende como "caráter" ("character"). Numa entrevista nos anos 50, Welles elucidava: ""Character" é a maneira como nos comportamos quando nos recusamos às leis a que devemos obedecer, aos sentimentos que experimentamos; é a maneira como nos comportamos em presença da vida e diante da morte". Esse "character" não é muito diferente do que Nietzsche chamava de "vontade de potência".
Todos os (faustianos) personagens que Welles encarnava como ator, especialmente os de seus próprios filmes, tinham "character". Welles tinha muita afeição por eles, mas os detestava moralmente. A relevância de sua obra se encontra, em boa medida, aí: seu juízo sobre os personagens não prevaleceu sobre sua afeição. Ao substituir a moralidade pelo encanto, subverteu o dogma central do cinema clássico americano.
Essa distinção entre juízo e afeto, em Welles, deixou a crítica muitas vezes confusa. Quando ainda era crítico, François Truffaut escreveu um artigo sobre "A Marca da Maldade" em que descrevia o personagem do policial interpretado por Welles, Quinlan, como um gênio incapaz de se impedir de fazer o mal. Em nome de Welles, Truffaut chegava mesmo a defender a atitude de Quinlan, sua maneira de fazer justiça pelas próprias mãos. Welles se viu obrigado a esclarecer: não era a favor dos abusos policiais e, sobretudo, não compartilhava das idéias de Quinlan. Apenas não podia deixar de, humanamente, simpatizar com ele, com seu "character".
Quinlan é um escorpião (assim como Arkadin, Bannister e Iago), e Vargas, o personagem do policial correto interpretado por Charlton Heston, é uma rã (como Otelo), isto é, alguém que acredita em contratos sociais e em valores superiores. A personagens como Vargas, "homens verídicos" (que se acreditam portadores da verdade e se arvoram o direito de julgar), personagens típicos do cinema americano, Welles não se cansará de mostrar que não existem valores superiores à vida.
À obsessão dos americanos pelo julgamento, Welles responderá com seus personagens não julgáveis e com cenas de tribunal em que (como em "A Dama de Shangai" e "O Processo") a impostura reina. Como notara o filósofo Gilles Deleuze, Welles fez pelo cinema americano o que Nietzsche havia feito pela filosofia: destronar-lhe o ideal de verdade.
Em vez desse ideal, a metamorfose do verdadeiro. Tomando de Shakespeare, seu predileto, a potência metamórfica dos personagens, Welles criou, para o lugar dos velhos "homens verídicos" do cinema americano, uma série de falsários enigmáticos: Kane, Arkadin, Bannister, Quinlan. Série que culmina e prolifera (por uma espécie de multiplicidade do falso) em "F for Fake" ("F de Falso").


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