São Paulo, Segunda-feira, 25 de Outubro de 1999
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CRÍTICA

Filme usa banha humana para descobrir quem somos


GERALD THOMAS
especial para a Folha,
em Nova York

Esperem por esse filme com os punhos cerrados. Se o resto da América fez contagem regressiva para a estréia de "Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma" e foi buscar um balde de pipoca e um lugar confortável na fila, o mundo cult e intelectual americano começou a ser provocado pelo "Clube da Luta" já há alguns meses, quando a revista "W" publicou um ensaio fotográfico de Brad Pitt provocativo, sensual e meio sujo, feito pelo seu amigo fotógrafo Steven Klein.
Ao mesmo tempo, a campanha publicitária optou por um misterioso anúncio sem legendas e sem promessas, mostrando somente um pedaço de sabão.
Descrito como o "Laranja Mecânica" da década de 90, o filme de David Fincher é, realmente, genial. Assim como na obra-prima de Anthony Burgess e Stanley Kubrick, os personagens manipulam e invertem o sentido das coisas. Se, na obra clássica, o personagem principal se inspira numa obra pacifista (a "Nona Sinfonia", de Beethoven, conhecida como a sinfonia da "paz e da união entre os homens") para criar o caos e provocar a violência, em "Clube da Luta" os personagens usam a violência como uma base na busca da coerência e da paz.
Pode-se dizer que ambos são filmes de "resistência", na luta pela demolição dos valores hipócritas e medíocres, estereotipáveis e desprovidos de memória impostos pelos tempos modernos.
"Clube da Luta" é aglomerado de citações e homenagens a uma verdadeira tradição de filmes "rebeldes". Profético, divertido e engajado, ele dividiu a crítica radicalmente, e sua publicidade não deixou escapar nem algumas das (poucas) opiniões negativas a seu respeito. Um dos jornais chega a perguntar se é no inferno que se esconde o público propício para esse filme. A propaganda do filme, evidentemente, incorpora essa opinião.
Em "Clube da Luta", David Fincher busca no cinema do passado recente elementos pra explicar o atual estado de coisas nesta sociedade virtual com suas sedutoras promessas sensacionalistas e sua obstinação em suprimir a dor, o sofrimento e a poesia que resultam de suas inexplicáveis questões.
David Fincher revisita "Performance", o filme genial do cineasta Nicholas Roeg da década de 70 que fundia os personagens principais (vividos por Mick Jagger e James Fox), e "Perdidos na Noite", de John Schlesinger, outro filme de "male bondage" que resolve, na interdependência e nas diferenças de seus dois personagens, o conflito social e psicológico de dois seres que vivem à margem da sociedade.
Fincher persegue a dor há tempos. Em "Clube da Luta", ele chega ao requinte de revisitar um cenário que já havia usado, brevemente, em "Seven".
É o quarto dilapidado e com as paredes corroídas, em que a vítima do psicopata homicida (vivido por Kevin Spacey) é um ser em estado de semiputrefação, mantida no limite absoluto e definitivo entre a vida e a morte.
Se, em "Seven", as questões enigmáticas do crime podiam ser respondidas por meio de pistas acháveis na "Bíblia" ou no inferno de Dante, em "Clube da Luta" as citações estão no universo do cartoon e do mundo virtual, onde a dor não dói e a morte não mata. A violência é simplesmente um estado ideológico que quer significar "humanidade" e visa contrariar a mecanização do mundo e a estereotipização dos seres humanos, como haviam previsto Orwell e Huxley.

Porrada
"Dá-me uma porrada", implora o personagem de Brad Pitt. Assim como em "Fim de Jogo", de Samuel Beckett, em que o personagem cego e aleijado Hamm desafiava seu companheiro, Clov, a lhe dar um beliscão só para provar que ainda estava vivo, Pitt quer descobrir se ainda merece viver.
"Como?", pergunta, perplexo, Edward Norton, um corretor à beira de um ataque de nervos. "Dá-me uma porrada, bem aqui no meio da minha cara", repete Brad Pitt, como se estivesse colocando a pergunta no registro irônico e ofensivo da poesia beatnik, de Allen Ginsberg ou William Burroughs.
Quando Norton, finalmente, lhe planta um bom sopapo, o cinema vem abaixo. Como se fossem duas crianças brincando de gladiadores, Pitt e Norton descobrem uma nova forma de passar o tempo e subverter a ordem da sociedade perdida nos anais do consumismo.
Com sacos de banha humana na mão (para fazer sabão), vasculhando o lixo de uma clínica de lipoaspiração, o personagem de Pitt filosofa: "O que somos? Somos consumidores com 500 canais de TV e uma grife em nossas cuecas e estamos à procura de um canto que possamos chamar de nosso?" Poucos filmes recentes têm carregado uma bandeira política tão poderosa. Poucos filmes tiveram a ousadia de pintar, com tintas otimistas e tão divertidas, tamanho pessimismo.


Avaliação:     

Filme: Clube da Luta (Fight Club)
Direção: David Fincher
Produção: EUA, 1999, 135 min
Quando: amanhã, às 19h25, no Cinearte





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