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CRÍTICA
Filme usa banha humana para descobrir quem somos
GERALD THOMAS
especial para a Folha,
em Nova York
Esperem por esse filme com os
punhos cerrados. Se o resto da
América fez contagem regressiva
para a estréia de "Star Wars: Episódio 1 - A Ameaça Fantasma" e
foi buscar um balde de pipoca e
um lugar confortável na fila, o
mundo cult e intelectual americano começou a ser provocado pelo
"Clube da Luta" já há alguns meses, quando a revista "W" publicou um ensaio fotográfico de
Brad Pitt provocativo, sensual e
meio sujo, feito pelo seu amigo
fotógrafo Steven Klein.
Ao mesmo tempo, a campanha
publicitária optou por um misterioso anúncio sem legendas e sem
promessas, mostrando somente
um pedaço de sabão.
Descrito como o "Laranja Mecânica" da década de 90, o filme
de David Fincher é, realmente,
genial. Assim como na obra-prima de Anthony Burgess e Stanley
Kubrick, os personagens manipulam e invertem o sentido das
coisas. Se, na obra clássica, o personagem principal se inspira numa obra pacifista (a "Nona Sinfonia", de Beethoven, conhecida
como a sinfonia da "paz e da
união entre os homens") para
criar o caos e provocar a violência, em "Clube da Luta" os personagens usam a violência como
uma base na busca da coerência e
da paz.
Pode-se dizer que ambos são
filmes de "resistência", na luta pela demolição dos valores hipócritas e medíocres, estereotipáveis e
desprovidos de memória impostos pelos tempos modernos.
"Clube da Luta" é aglomerado
de citações e homenagens a uma
verdadeira tradição de filmes "rebeldes". Profético, divertido e engajado, ele dividiu a crítica radicalmente, e sua publicidade não
deixou escapar nem algumas das
(poucas) opiniões negativas a seu
respeito. Um dos jornais chega a
perguntar se é no inferno que se
esconde o público propício para
esse filme. A propaganda do filme, evidentemente, incorpora essa opinião.
Em "Clube da Luta", David Fincher busca no cinema do passado
recente elementos pra explicar o
atual estado de coisas nesta sociedade virtual com suas sedutoras
promessas sensacionalistas e sua
obstinação em suprimir a dor, o
sofrimento e a poesia que resultam de suas inexplicáveis questões.
David Fincher revisita "Performance", o filme genial do cineasta Nicholas Roeg da década de 70
que fundia os personagens principais (vividos por Mick Jagger e
James Fox), e "Perdidos na Noite", de John Schlesinger, outro filme de "male bondage" que resolve, na interdependência e nas diferenças de seus dois personagens, o conflito social e psicológico de dois seres que vivem à margem da sociedade.
Fincher persegue a dor há tempos. Em "Clube da Luta", ele chega ao requinte de revisitar um cenário que já havia usado, brevemente, em "Seven".
É o quarto dilapidado e com as
paredes corroídas, em que a vítima do psicopata homicida (vivido por Kevin Spacey) é um ser em
estado de semiputrefação, mantida no limite absoluto e definitivo
entre a vida e a morte.
Se, em "Seven", as questões
enigmáticas do crime podiam ser
respondidas por meio de pistas
acháveis na "Bíblia" ou no inferno de Dante, em "Clube da Luta"
as citações estão no universo do
cartoon e do mundo virtual, onde
a dor não dói e a morte não mata.
A violência é simplesmente um
estado ideológico que quer significar "humanidade" e visa contrariar a mecanização do mundo
e a estereotipização dos seres humanos, como haviam previsto
Orwell e Huxley.
Porrada
"Dá-me uma porrada", implora
o personagem de Brad Pitt. Assim
como em "Fim de Jogo", de Samuel Beckett, em que o personagem cego e aleijado Hamm desafiava seu companheiro, Clov, a lhe
dar um beliscão só para provar
que ainda estava vivo, Pitt quer
descobrir se ainda merece viver.
"Como?", pergunta, perplexo,
Edward Norton, um corretor à
beira de um ataque de nervos.
"Dá-me uma porrada, bem aqui
no meio da minha cara", repete
Brad Pitt, como se estivesse colocando a pergunta no registro irônico e ofensivo da poesia beatnik,
de Allen Ginsberg ou William
Burroughs.
Quando Norton, finalmente,
lhe planta um bom sopapo, o cinema vem abaixo. Como se fossem duas crianças brincando de
gladiadores, Pitt e Norton descobrem uma nova forma de passar o
tempo e subverter a ordem da sociedade perdida nos anais do consumismo.
Com sacos de banha humana
na mão (para fazer sabão), vasculhando o lixo de uma clínica de lipoaspiração, o personagem de
Pitt filosofa: "O que somos? Somos consumidores com 500 canais de TV e uma grife em nossas
cuecas e estamos à procura de um
canto que possamos chamar de
nosso?" Poucos filmes recentes
têm carregado uma bandeira política tão poderosa. Poucos filmes
tiveram a ousadia de pintar, com
tintas otimistas e tão divertidas,
tamanho pessimismo.
Avaliação:
Filme: Clube da Luta (Fight Club)
Direção: David Fincher
Produção: EUA, 1999, 135 min
Quando: amanhã, às 19h25, no Cinearte
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