São Paulo, quarta-feira, 25 de outubro de 2000

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"DOLCE"
Sokurov volta ao luto do pós-guerra com poeta kamikaze

ESPECIAL PARA A FOLHA

Se o cinema do russo Alexander Sokurov costuma ser comparado, apressadamente, ao de seu compatriota Tarkovski, é por ser concebido enquanto imagem direta do tempo. A linhagem de Sokurov não passa apenas por Tarkovski, mas por todo o cinema moderno do pós-guerra.
Tanto mais que, em Sokurov, a imagem-tempo reencontra a sua expressão original: o luto. Sim, o luto da guerra, sob o qual nasceu o novo cinema. Assim, entre "Mãe e Filho" e seu novo "Dolce", dois filmes sobre o luto, Sokurov realizou o fundamental "Moloch", obra-prima em que devolvia o personagem de Hitler à ficção (de onde nunca deveria ter saído), dando cabo ao projeto de Syberberg afinal. Se, como dizia o cineasta alemão, "Hitler está em nós", é preciso recuperar o que ele nos roubou, o seu personagem, tal como fizera Chaplin, retomando posse sobre o seu bigode em "O Grande Ditador".
Em "Moloch", Sokurov não deixava de se reportar, numa bela sequência, à proposição/provocação de Syberberg: Hitler deve ser encarado como um cineasta. Era o que já salientara o crítico Serge Daney: o cinema clássico culminara num modelo teatral-propagandístico do qual Hitler, com grandes encenações em massa, aproveitar-se-ia como ninguém.
Daney notava que, em reação a esse modelo, o cinema moderno ensaiara, na planura de suas imagens, um retorno à pintura. E aqui encontramos, mais uma vez, a arte de Sokurov: se, em "Moloch", o cineasta reenquadrava Hitler nos espaços e paisagens de Caspar-Friedrich, cujas pinturas fizeram parte do imaginário nazista, em "Dolce", ele parte da pintura japonesa para nos contar a história de um poeta kamikaze.
Trata-se da história real de Toshio Shimao, escritor japonês que, após dedicar a juventude à poesia, alistou-se num esquadrão kamikaze durante a Segunda Guerra. Pouco antes de cumprir sua missão suicida, no entanto, ele se apaixonou por uma professora, com quem, ajudado pelo acaso, acabou constituindo família.
"Dolce" são páginas do livro da vida da família: a história, revelada em fotos, de como a família foi parar numa ilha ao sul do Japão, mas, sobretudo, a cerimônia, retratada em "tableaux", de um luto. O luto da filha e da viúva de Shimao, protagonistas do filme. E, como esse luto é a própria imagem-tempo, ele logo se revela, na memória da viúva, Miho, muito mais antigo. (TMM)

Dolce
Dolce
   
Direção: Alexander Sokurov
Produção: Rússia, 2000
Quando: hoje, às 14h30, na Sala UOL



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