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DISCO/CRÍTICA
Trilha sonora de Björk é matéria viva de filme
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
O filme é uma devastação.
Desabilita qualquer resposta
crítica por dias. Só aos poucos,
com a insistência do hábito e as
repetições do trivial, cada um vai
voltando para a vida de fora, tão
iluminada e ao mesmo tempo tão
esvaziada por ele. Ninguém tem
coragem para ver esse filme de
novo tão cedo; nem é questão de
coragem, mas de energia afetiva à
altura das visões de Lars von
Trier. Voltar à música de Björk é
uma outra história, porque é o
que há de felicidade possível, desesperada que seja, na vida dentro
do filme e na memória de fora.
A música já tinha papel crucial
em "Ondas do Destino" (96), outro filme de Von Trier. A música,
ali, nunca participa como ambiente, aquecimento sentimental
de uma superfície morna.
Em "Dançando no Escuro",
também, a música é matéria viva.
O filme é vasto e faz pensar sobre
muito, mas também especificamente sobre a música, sobre o encantamento absoluto da experiência pela força do canto e do
som, tanto quanto do movimento
e da dança. Num excelente artigo
no "Mais!" (3/12/2000), Laymert
Garcia dos Santos comentava a
"conversão", operada pela personagem Selma/Björk, "do alienante cinema de massa num utópico
cinema interior", uma estratégia
de afirmação humana, contra o
mundo desumano. Tal conversão
se dá "por meio da mudança de
ritmo que o ouvido humano pode
imprimir no universo mecânico";
isto é, pela abstração da repetição
em ritmo, em música e sentido.
Podem-se acrescentar três comentários: do ponto de vista da
composição, a música parte dessas mesmas repetições. São "samplings" (versão digital dos velhos
"loops" de fita magnética: pedaços de fita cortados e correndo em
círculo, sem fim). Eles nascem da
repetição concreta do ruído das
máquinas no início da segunda
faixa ou de trem na terceira, mas
gradualmente convertem-se em
padrões de ritmo para as melodias. O processo ganha outra ironia em "Scatterheart", na qual se
escuta o barulho de um disco arranhado: a mecânica incorporada
ao mundo da reprodução sonora.
O ritmo, porém, não é tudo.
Não se trata só de organizar musicalmente a matéria bruta, acidental. Nem de extrair o que há de
alusivo e nostálgico nesses pedaços quebrados de som. O próprio
ato da escuta abre as portas de um
mundo paralelo, para Selma, na
fronteira do invisível.
São muitos momentos em que
Selma se lança nesses transes. E
não se trata, a rigor, ou não só, de
escapismo, em qualquer sentido
simples: é antes uma afirmação,
um engajamento, uma entrega
positiva e irredutível, que faz frente a tudo o que conspira para reduzir a vida dessa operária que está ficando cega, à invisibilidade e à
falta do que ver. "Já vi o que preciso/ Eu sei o que faço/ Vi tudo o
que há para ver", canta Selma.
Uma resposta, do fundo das misérias do ano 2000, às tristezas de
"Guarda-Chuvas do Amor" (64),
outro filme sobre a metamorfose,
ou redenção da vida em canções.
Dois parênteses técnicos: 1) o
padrão rítmico do "trem" que
serve de prelúdio e depois de base
para a canção é o de uma desaceleração acentuada, 4-2-2-1, quase
uma alegoria do que se esvai, como a visão de Selma, que, quanto
mais diminui, mais faz bater o coração das trevas, que tem forma
de corda vocal e concha auditiva.
2) No clímax do "Novo Mundo", a canção instrumental que
abre wagnerianamente o filme e o
fecha, depois, com canto, à palavra "see" (vejo) corresponde a nota dó bemol, que em termos sonoros é igual a um si natural. Que
um dó alterado substitua o si natural já é sugestivo em português.
Mas em inglês, é ainda melhor:
em vez de "B natural"/ "be natural" (ser natural) tem-se agora um
"C flat"/"see flat" (ver achatado,
ver plano). Que a nota principal, o
ponto mais agudo da melodia,
uma inflexão no centro sensível
da canção principal do filme, seja
um "C", ou "see" rebaixado, justamente na palavra "see", talvez
seja um acidente, mas é bom demais para não ser meditado.
O dó bemol é um dos episódios
em que Björk se libera, deixando
para trás os constrangimentos de
tom e dicção que ela se impõe.
Não seria demais ver nisto também uma alegoria de outros temas. A passagem liberatória, por
um instante, dessa voz estranha e
estrangeira, aprisionada em sotaque e sussurro, encena sonoramente outras liberações, que Selma não vai conquistar nunca, exceto como imagem interna de si.
Nessa voz estranha, como nesse
ouvido sobressaltado, o que ganha corpo é uma tensão absoluta
de vida, uma concentração total
de afeto, em meio à terra devastada desse mundo tão errado, tão
normal. Que ela não tenha como
se sustentar, que seu exílio não tenha redenção, exceto por uma esperança, talvez ilusória, na visão
do filho, é um destino adivinhado.
Que, apesar disso, e apesar de
tamanha tristeza, o filme nos faça
ver as coisas ao redor, como pela
primeira vez, livres do desgaste
sentimental, é uma lição inesperada de música, que ele nos dá, em
meio a muito mais, por meio da
voz para sempre inesperada e para sempre estrangeira de Björk.
Selmasongs
Artista: Björk
Lançamento: Universal, 2000
Quanto: R$ 25 (em média)
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