São Paulo, segunda-feira, 25 de dezembro de 2000

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DISCO/CRÍTICA


Trilha sonora de Björk é matéria viva de filme



ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS



O filme é uma devastação. Desabilita qualquer resposta crítica por dias. Só aos poucos, com a insistência do hábito e as repetições do trivial, cada um vai voltando para a vida de fora, tão iluminada e ao mesmo tempo tão esvaziada por ele. Ninguém tem coragem para ver esse filme de novo tão cedo; nem é questão de coragem, mas de energia afetiva à altura das visões de Lars von Trier. Voltar à música de Björk é uma outra história, porque é o que há de felicidade possível, desesperada que seja, na vida dentro do filme e na memória de fora.
A música já tinha papel crucial em "Ondas do Destino" (96), outro filme de Von Trier. A música, ali, nunca participa como ambiente, aquecimento sentimental de uma superfície morna.
Em "Dançando no Escuro", também, a música é matéria viva. O filme é vasto e faz pensar sobre muito, mas também especificamente sobre a música, sobre o encantamento absoluto da experiência pela força do canto e do som, tanto quanto do movimento e da dança. Num excelente artigo no "Mais!" (3/12/2000), Laymert Garcia dos Santos comentava a "conversão", operada pela personagem Selma/Björk, "do alienante cinema de massa num utópico cinema interior", uma estratégia de afirmação humana, contra o mundo desumano. Tal conversão se dá "por meio da mudança de ritmo que o ouvido humano pode imprimir no universo mecânico"; isto é, pela abstração da repetição em ritmo, em música e sentido.
Podem-se acrescentar três comentários: do ponto de vista da composição, a música parte dessas mesmas repetições. São "samplings" (versão digital dos velhos "loops" de fita magnética: pedaços de fita cortados e correndo em círculo, sem fim). Eles nascem da repetição concreta do ruído das máquinas no início da segunda faixa ou de trem na terceira, mas gradualmente convertem-se em padrões de ritmo para as melodias. O processo ganha outra ironia em "Scatterheart", na qual se escuta o barulho de um disco arranhado: a mecânica incorporada ao mundo da reprodução sonora.
O ritmo, porém, não é tudo. Não se trata só de organizar musicalmente a matéria bruta, acidental. Nem de extrair o que há de alusivo e nostálgico nesses pedaços quebrados de som. O próprio ato da escuta abre as portas de um mundo paralelo, para Selma, na fronteira do invisível.
São muitos momentos em que Selma se lança nesses transes. E não se trata, a rigor, ou não só, de escapismo, em qualquer sentido simples: é antes uma afirmação, um engajamento, uma entrega positiva e irredutível, que faz frente a tudo o que conspira para reduzir a vida dessa operária que está ficando cega, à invisibilidade e à falta do que ver. "Já vi o que preciso/ Eu sei o que faço/ Vi tudo o que há para ver", canta Selma. Uma resposta, do fundo das misérias do ano 2000, às tristezas de "Guarda-Chuvas do Amor" (64), outro filme sobre a metamorfose, ou redenção da vida em canções.
Dois parênteses técnicos: 1) o padrão rítmico do "trem" que serve de prelúdio e depois de base para a canção é o de uma desaceleração acentuada, 4-2-2-1, quase uma alegoria do que se esvai, como a visão de Selma, que, quanto mais diminui, mais faz bater o coração das trevas, que tem forma de corda vocal e concha auditiva.
2) No clímax do "Novo Mundo", a canção instrumental que abre wagnerianamente o filme e o fecha, depois, com canto, à palavra "see" (vejo) corresponde a nota dó bemol, que em termos sonoros é igual a um si natural. Que um dó alterado substitua o si natural já é sugestivo em português. Mas em inglês, é ainda melhor: em vez de "B natural"/ "be natural" (ser natural) tem-se agora um "C flat"/"see flat" (ver achatado, ver plano). Que a nota principal, o ponto mais agudo da melodia, uma inflexão no centro sensível da canção principal do filme, seja um "C", ou "see" rebaixado, justamente na palavra "see", talvez seja um acidente, mas é bom demais para não ser meditado.
O dó bemol é um dos episódios em que Björk se libera, deixando para trás os constrangimentos de tom e dicção que ela se impõe. Não seria demais ver nisto também uma alegoria de outros temas. A passagem liberatória, por um instante, dessa voz estranha e estrangeira, aprisionada em sotaque e sussurro, encena sonoramente outras liberações, que Selma não vai conquistar nunca, exceto como imagem interna de si.
Nessa voz estranha, como nesse ouvido sobressaltado, o que ganha corpo é uma tensão absoluta de vida, uma concentração total de afeto, em meio à terra devastada desse mundo tão errado, tão normal. Que ela não tenha como se sustentar, que seu exílio não tenha redenção, exceto por uma esperança, talvez ilusória, na visão do filho, é um destino adivinhado.
Que, apesar disso, e apesar de tamanha tristeza, o filme nos faça ver as coisas ao redor, como pela primeira vez, livres do desgaste sentimental, é uma lição inesperada de música, que ele nos dá, em meio a muito mais, por meio da voz para sempre inesperada e para sempre estrangeira de Björk.



Selmasongs
    
Artista: Björk
Lançamento: Universal, 2000
Quanto: R$ 25 (em média)




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