São Paulo, sexta, 25 de dezembro de 1998

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CINEMA ESTRÉIAS
Moretti radicaliza o filme-diário em "Aprile"

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema

"Aprile" pode ser visto, em primeiro lugar, como o "8 e 1/2" de Nanni Moretti. Logo no início vemos o cineasta em crise suspender as filmagens de um musical sobre um doceiro trotskista, trocando-o pelo envolvimento em dois acontecimentos que lhe parecem centrais: as eleições legislativas de 1996 na Itália e a gravidez de sua mulher.
Decide, em vista disso, realizar um documentário sobre a campanha eleitoral, ao mesmo tempo em que acompanha apaixonadamente os fatos relativos ao nascimento próximo de seu filho.
Desde aí, Moretti já nos leva a observar o filme de outra maneira. O parto é sua idéia central. Parto do filho, naturalmente, mas também o parto político: ambos geram ansiedade e angústia quase desmedida; em ambos, investe todo seu afeto.
Não se trata, portanto, de um "8 e 1/2", já que não existe crise pessoal ou criativa. Toda a questão é vincular o filme diretamente aos seus afetos. Se na forma tradicional o filme se faz com experiências passadas, devidamente remoídas e convertidas em ficção, na forma contemporânea Moretti pensa em outra hipótese: o vínculo do momento vivido a um devir forçosamente incerto.
Nesse nível, o filme substitui a romântica angústia criativa pela exploração da angústia concreta em relação ao futuro, a tudo que ainda não se delineou. Daí ser possível ver, entre outras coisas, uma longa discussão entre ele e a mulher sobre a escolha do nome do filho, ou ainda o cineasta roendo as unhas diante da TV, durante um debate, temendo a vitória de Berlusconi (da direita).
Em seu filme anterior, "Caro Diário", Moretti já havia optado pela forma confessional. Compunha seu filme como um diário. Mas as páginas que filmava eram presentes (seus passeios de lambreta por Roma, por exemplo) ou passadas (o câncer de que foi vítima).
Já no último episódio -referente ao câncer- anunciava-se o procedimento usado neste filme: Moretti filmava-se em sessões em quimioterapia, que, na montagem, juntou a cenas rodadas posteriormente. De todo modo, era ao passado que o filme se dirigia. Como páginas de um diário que se abrem.
Desta vez, o italiano radicaliza seu projeto, já que estamos essencialmente dentro da escrita cotidiana desse diário, em que as experiências vividas vão se entrelaçando quase caoticamente, sem a ordenação e o distanciamento que o olhar retrospectivo oferecem. Nós, espectadores, nos perguntamos, como em nossas vidas, aonde tudo isso vai dar. E não sabemos exatamente, porque nem o cineasta sabe.
Estamos diante de um realismo que leva adiante a experiência do americano John Cassavetes, digamos, onde tudo parece se criar diante de nossos olhos, mas ao mesmo tempo existe um tom cômico, feliz, que reata com a grande época da comédia italiana: uma grande satisfação com a vida, um enorme apetite das coisas, mesmo naquilo que têm de incerto -como todo futuro de qualquer ser vivente.
Por fim, existe em Moretti uma sensibilidade aguçada para a dificuldade de "suspensão da descrença" pelo espectador atual. No passado, na era clássica, o verdadeiro acomoda-se facilmente ao verossímil. Acreditávamos que a representação de um fato e o fato eram a mesma coisa. O que víamos passava por coisa real (mesmo que fosse realidade ficcional).
O espectador contemporâneo, ao contrário, é mais sensível ao truque. O fato de ver não nos leva a crer. Sabemos que as imagens podem mentir. É uma questão frequente no cinema atual. Moretti reage a ela colocando a si próprio em cena. Não por narcisismo, mas pela necessidade de "autenticar" as imagens. Sua presença é como uma assinatura. Ele não é um ator, como Woody Allen ou Jerry Lewis, interpretando seus próprios filmes. O filme é que o converte em ator e sua pessoa em personagem.
Intervenção ambígua, já que os três -a pessoa, o ator, o personagem- tornam-se fugidios, escapam entre nossos dedos, pois são as três coisas e nenhuma delas ao mesmo tempo. Idéia que talvez se possa confirmar pelas imagens finais, em que Moretti passeia com sua lambreta, vestindo uma pesada capa negra, que não deixa de evocar um irônico conde Drácula.
Um Drácula da câmera, que também serve como definição do cineasta: um vampiro das coisas, que as retira da realidade para convertê-las em objetos sensíveis, restituindo-as à vida, mas agora a uma outra vida, a da tela de cinema.
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Filme: Aprile Produção: Itália, 1998 Direção: Nanni Moretti Com: Nanni Moretti e Pietro Moretti Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 2


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