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CINEMA ESTRÉIAS
Moretti radicaliza o filme-diário em "Aprile"
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
"Aprile" pode ser visto, em primeiro lugar, como o "8 e 1/2" de
Nanni Moretti. Logo no início vemos o cineasta em crise suspender
as filmagens de um musical sobre
um doceiro trotskista, trocando-o
pelo envolvimento em dois acontecimentos que lhe parecem centrais: as eleições legislativas de
1996 na Itália e a gravidez de sua
mulher.
Decide, em vista disso, realizar
um documentário sobre a campanha eleitoral, ao mesmo tempo em
que acompanha apaixonadamente
os fatos relativos ao nascimento
próximo de seu filho.
Desde aí, Moretti já nos leva a observar o filme de outra maneira. O
parto é sua idéia central. Parto do
filho, naturalmente, mas também
o parto político: ambos geram ansiedade e angústia quase desmedida; em ambos, investe todo seu
afeto.
Não se trata, portanto, de um "8 e
1/2", já que não existe crise pessoal
ou criativa. Toda a questão é vincular o filme diretamente aos seus
afetos. Se na forma tradicional o
filme se faz com experiências passadas, devidamente remoídas e
convertidas em ficção, na forma
contemporânea Moretti pensa em
outra hipótese: o vínculo do momento vivido a um devir forçosamente incerto.
Nesse nível, o filme substitui a
romântica angústia criativa pela
exploração da angústia concreta
em relação ao futuro, a tudo que
ainda não se delineou. Daí ser possível ver, entre outras coisas, uma
longa discussão entre ele e a mulher sobre a escolha do nome do filho, ou ainda o cineasta roendo as
unhas diante da TV, durante um
debate, temendo a vitória de Berlusconi (da direita).
Em seu filme anterior, "Caro
Diário", Moretti já havia optado
pela forma confessional. Compunha seu filme como um diário. Mas
as páginas que filmava eram presentes (seus passeios de lambreta
por Roma, por exemplo) ou passadas (o câncer de que foi vítima).
Já no último episódio -referente ao câncer- anunciava-se o procedimento usado neste filme: Moretti filmava-se em sessões em quimioterapia, que, na montagem,
juntou a cenas rodadas posteriormente. De todo modo, era ao passado que o filme se dirigia. Como
páginas de um diário que se
abrem.
Desta vez, o italiano radicaliza
seu projeto, já que estamos essencialmente dentro da escrita cotidiana desse diário, em que as experiências vividas vão se entrelaçando quase caoticamente, sem a ordenação e o distanciamento que o
olhar retrospectivo oferecem. Nós,
espectadores, nos perguntamos,
como em nossas vidas, aonde tudo
isso vai dar. E não sabemos exatamente, porque nem o cineasta sabe.
Estamos diante de um realismo
que leva adiante a experiência do
americano John Cassavetes, digamos, onde tudo parece se criar
diante de nossos olhos, mas ao
mesmo tempo existe um tom cômico, feliz, que reata com a grande
época da comédia italiana: uma
grande satisfação com a vida, um
enorme apetite das coisas, mesmo
naquilo que têm de incerto -como todo futuro de qualquer ser vivente.
Por fim, existe em Moretti uma
sensibilidade aguçada para a dificuldade de "suspensão da descrença" pelo espectador atual. No
passado, na era clássica, o verdadeiro acomoda-se facilmente ao
verossímil. Acreditávamos que a
representação de um fato e o fato
eram a mesma coisa. O que víamos
passava por coisa real (mesmo que
fosse realidade ficcional).
O espectador contemporâneo,
ao contrário, é mais sensível ao
truque. O fato de ver não nos leva a
crer. Sabemos que as imagens podem mentir. É uma questão frequente no cinema atual. Moretti
reage a ela colocando a si próprio
em cena. Não por narcisismo, mas
pela necessidade de "autenticar"
as imagens. Sua presença é como
uma assinatura. Ele não é um ator,
como Woody Allen ou Jerry Lewis,
interpretando seus próprios filmes. O filme é que o converte em
ator e sua pessoa em personagem.
Intervenção ambígua, já que os
três -a pessoa, o ator, o personagem- tornam-se fugidios, escapam entre nossos dedos, pois são
as três coisas e nenhuma delas ao
mesmo tempo. Idéia que talvez se
possa confirmar pelas imagens finais, em que Moretti passeia com
sua lambreta, vestindo uma pesada capa negra, que não deixa de
evocar um irônico conde Drácula.
Um Drácula da câmera, que também serve como definição do cineasta: um vampiro das coisas,
que as retira da realidade para convertê-las em objetos sensíveis, restituindo-as à vida, mas agora a
uma outra vida, a da tela de cinema.
²
Filme: Aprile
Produção: Itália, 1998
Direção: Nanni Moretti
Com: Nanni Moretti e Pietro Moretti
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco de Cinema - sala 2
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