São Paulo, sexta, 25 de dezembro de 1998

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Um Bergman cristalino

da Redação

É de se entender, vendo "A Fonte da Donzela", a admiração de Ingmar Bergman pela obra de Robert Bresson e pelo universo do escritor Georges Bernanos, dois católicos radicais para quem o principal atributo humano parece ser o mal.
Bergman não é tão pessimista, ao narrar a lenda medieval nórdica de Karin, a jovem virgem que, ao atravessar uma floresta, é estuprada e morta por dois pastores. No local do sacrifício de Karin surge a fonte a que se refere o título.
Esse é o final do filme, mas não tem a menor importância conhecê-lo antecipadamente. "A Fonte da Donzela" é como uma ópera, que se aproveita melhor tanto mais se conhece a história, cujo sentido não está na trama de vingança (pai mata os assassinos da filha etc.), mas no jogo de oposições que se cria ao longo dela.
A jovem Karin opõe-se a Ingeri, garota grávida que também foi estuprada. Maldita, Ingeri quer ver Karin estuprada. Da mesma forma, a mãe de Karin desejará a morte de seus assassinos. O pai, por fim, não medirá sua ira no momento da vingança. Além dos dois estupradores, eliminará ainda o irmão deles, um menino que não tinha nada a ver com a história.
Em suma, a fonte que jorra no final do filme não livra os envolvidos da tragédia, mas irrompe como uma intervenção divina, pela qual os sentimentos humanos -a inveja, o desprezo, o desejo de humilhação do outro- são de certo modo resgatados.
Saímos, nesse final, do registro Bernanos/Bresson, em que a humanidade fica entregue a sua capacidade infinita de errar, enquanto Deus ausenta-se. Aqui, a capacidade de errar é idêntica, mas Deus consente ao final em acenar com um milagre, pelo qual nos purifica desses erros.
Para contar uma história dessa natureza, o mínimo que se poderia esperar era isso: uma narrativa tão cristalina quanto a água da fonte. Bergman não nega fogo. Constrói um sistema de oposições e simetrias claro e cria personagens tão simples quanto eficazes (ao qual vem se juntar a cópia impecável, que dá conta dos contrastes e da luminosidade do filme).
Nesse sentido, vale a pena notar algumas cenas primorosas, como a de Ingeri solitária, logo no início, passando da sombra à luz e vice-versa; a confissão silenciosa do crime pelos dois irmãos; e, naturalmente, a sequência final, em que, no lugar onde é encontrado o corpo de Karin, começa a jorrar a fonte da donzela.
Dito isso, convém dizer que "A Fonte da Donzela" talvez não seja um dos maiores filmes do realizador sueco. Pelo menos impressiona menos que "Noites de Circo" ou "Morangos Silvestres". Mas seu despojamento, elegância e clareza têm a marca de um cineasta invulgar e de certa forma nos ajudam melhor a conhecê-lo do que suas obras-primas. (IA)


Filme: A Fonte da Donzela Produção: Suécia, 1959 Direção: Ingmar Bergman Com: Max von Sydow e Gunnell Lindbloon Quando: a partir de hoje, no Estação Vitrine


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