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RESENHA DA SEMANA
O antipolicial
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Uma pesquisa
recente do instituto Gallup mostrou que a maioria dos americanos preferem livros de não-ficção. É o óbvio
ululante. Não precisa de pesquisa. Basta comparar as seções de não-ficção e ficção de
um exemplar qualquer do
"Book Review" do "The New
York Times", cujas resenhas
são um reflexo descarado das
prioridades do mercado. Ou
tomar o número de biografias,
depoimentos, relatos de aventura e livros de auto-ajuda que
assolam o mercado editorial a
partir dos Estados Unidos.
Os mais apressados podem
ver, nessa situação, uma consequência perversa do que propunha, já em 1928, o principal
teórico e idealizador do movimento surrealista, André Breton (1896-1966), com seu relato
"Nadja". O surrealismo foi um
movimento "antiliterário" na
sua origem. Breton era contra
o romance e a ficção como gêneros domesticados, com regras e estilo próprios a serem
respeitados e reproduzidos,
contra a literatura posta numa
redoma. Queria a literatura na
vida, e que a obra fosse compreendida pelo extraliterário, o
que hoje acabou se tornando
regra, o caminho mais fácil e
adequado ao funcionamento
do mercado.
É mais fácil falar do autor e
da sua experiência de vida. É
mais fácil vender uma história
baseada em fatos reais. É mais
fácil atrair, comover e escandalizar com o relato de algo que
realmente aconteceu.
Por vários motivos: uma
atrocidade real é sempre mais
chocante que uma atrocidade
imaginada. O produto ganha
uma imagem pungente, mais
acessível e mais palpável aos
olhos de um público sem repertório de leitura, que procura no livro a ilusão de uma realidade objetiva em vez de um
mundo assumidamente recriado pela subjetividade. Não
dá para a ficção competir com
o sensacionalismo do mundo
real.
Também é mais fácil para o
resenhista fazer apenas paráfrases do que acabou de ler, em
vez de ter de quebrar a cabeça
para dizer alguma coisa menos
óbvia sobre uma criação da
imaginação, o que demanda
um repertório literário -e depende de um apuro de sua sensibilidade e inteligência-
além do simples conhecimento da realidade, que lhe bastaria para comentar um livro baseado em fatos reais.
Em suma, a atual prevalência
dos livros de não-ficção obedece à lei do menor esforço, à tábula rasa e ao embrutecimento
da cultura, baseados na crença
cega de certos lugares-comuns
que os surrealistas, em seu
tempo, tentaram derrubar, como a dicotomia entre realidade
e sonho.
A realidade que Breton buscava ao tentar escapar às regras
do romance não era a mesma
da maioria dos livros de não-ficção que hoje dominam o
mercado. Era bem mais complexa. Em sua teoria dos "vasos
comunicantes", o ideólogo
surrealista queria demonstrar
que o real e o sonho formam
um mesmo mundo, que a experiência imaginada nem por
isso é menos real.
Em "Nadja", o autor encontra uma mulher misteriosa nas
ruas de Paris. Fica obcecado
por ela. Narra seus encontros
como num diário. Tentando se
emancipar do estilo literário da
ficção, propõe uma observação
objetiva das manifestações de
sua própria existência, fornece
fotos e desenhos como documentos, como se fosse um antropólogo de si. Começa perguntando "quem sou eu?" e
termina com a dúvida de que
talvez tudo -a realidade objetiva- não passe de si mesmo:
"Serei eu apenas? Serei eu mesmo?"
Graças a essa aparição feminina, com sua ambiguidade de
alucinação real, que parece
existir unicamente na presença
do próprio autor (quando uma
outra pessoa pergunta a Nadja,
ao telefone, como encontrá-la,
ela responde: "Não sou encontrável"), ele passa a ver a cidade
inteira coberta por uma aura
de mistério, que antes não percebia.
É essa aura que o surrealismo
quer tornar visível na realidade
aparentemente mais banal,
por meio de uma "escrita automática", em que o sentido
mais profundo e enigmático,
evitando o encadeamento lógico do discurso da razão, poderá surgir das falhas, assim como o inconsciente, da livre associação.
Em "Nadja", tudo é coincidência ilógica. Ela aparece nos
momentos e lugares mais inesperados, como se estivesse ligada a tudo o que o autor pensa, vive ou escreve, como se
fosse ele próprio. E o texto tenta mimetizar esse mistério,
propondo uma narrativa cuja
estrutura é a não-estrutura,
uma composição de acasos
disparatados.
"Nadja" quis revolucionar a
literatura pela fragmentação
"automática". Quis que o sentido, como na vida, surgisse do
não-sentido. Vem daí a possível frustração do leitor de hoje
diante desse que, por não dar
nenhuma explicação, é o romance antipolicial por excelência, e está muito mais próximo do real do que qualquer
uma dessas narrativas de "não-ficção" construídas como roteiros de filmes de Hollywood.
Avaliação:
Livro: Nadja
Autor: André Breton
Tradução: Ivo Barroso
Editora: Imago
Quanto: R$ 18 (152 págs.)
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