São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
O antipolicial

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


Uma pesquisa recente do instituto Gallup mostrou que a maioria dos americanos preferem livros de não-ficção. É o óbvio ululante. Não precisa de pesquisa. Basta comparar as seções de não-ficção e ficção de um exemplar qualquer do "Book Review" do "The New York Times", cujas resenhas são um reflexo descarado das prioridades do mercado. Ou tomar o número de biografias, depoimentos, relatos de aventura e livros de auto-ajuda que assolam o mercado editorial a partir dos Estados Unidos.
Os mais apressados podem ver, nessa situação, uma consequência perversa do que propunha, já em 1928, o principal teórico e idealizador do movimento surrealista, André Breton (1896-1966), com seu relato "Nadja". O surrealismo foi um movimento "antiliterário" na sua origem. Breton era contra o romance e a ficção como gêneros domesticados, com regras e estilo próprios a serem respeitados e reproduzidos, contra a literatura posta numa redoma. Queria a literatura na vida, e que a obra fosse compreendida pelo extraliterário, o que hoje acabou se tornando regra, o caminho mais fácil e adequado ao funcionamento do mercado.
É mais fácil falar do autor e da sua experiência de vida. É mais fácil vender uma história baseada em fatos reais. É mais fácil atrair, comover e escandalizar com o relato de algo que realmente aconteceu.
Por vários motivos: uma atrocidade real é sempre mais chocante que uma atrocidade imaginada. O produto ganha uma imagem pungente, mais acessível e mais palpável aos olhos de um público sem repertório de leitura, que procura no livro a ilusão de uma realidade objetiva em vez de um mundo assumidamente recriado pela subjetividade. Não dá para a ficção competir com o sensacionalismo do mundo real.
Também é mais fácil para o resenhista fazer apenas paráfrases do que acabou de ler, em vez de ter de quebrar a cabeça para dizer alguma coisa menos óbvia sobre uma criação da imaginação, o que demanda um repertório literário -e depende de um apuro de sua sensibilidade e inteligência- além do simples conhecimento da realidade, que lhe bastaria para comentar um livro baseado em fatos reais.
Em suma, a atual prevalência dos livros de não-ficção obedece à lei do menor esforço, à tábula rasa e ao embrutecimento da cultura, baseados na crença cega de certos lugares-comuns que os surrealistas, em seu tempo, tentaram derrubar, como a dicotomia entre realidade e sonho.
A realidade que Breton buscava ao tentar escapar às regras do romance não era a mesma da maioria dos livros de não-ficção que hoje dominam o mercado. Era bem mais complexa. Em sua teoria dos "vasos comunicantes", o ideólogo surrealista queria demonstrar que o real e o sonho formam um mesmo mundo, que a experiência imaginada nem por isso é menos real.
Em "Nadja", o autor encontra uma mulher misteriosa nas ruas de Paris. Fica obcecado por ela. Narra seus encontros como num diário. Tentando se emancipar do estilo literário da ficção, propõe uma observação objetiva das manifestações de sua própria existência, fornece fotos e desenhos como documentos, como se fosse um antropólogo de si. Começa perguntando "quem sou eu?" e termina com a dúvida de que talvez tudo -a realidade objetiva- não passe de si mesmo: "Serei eu apenas? Serei eu mesmo?"
Graças a essa aparição feminina, com sua ambiguidade de alucinação real, que parece existir unicamente na presença do próprio autor (quando uma outra pessoa pergunta a Nadja, ao telefone, como encontrá-la, ela responde: "Não sou encontrável"), ele passa a ver a cidade inteira coberta por uma aura de mistério, que antes não percebia.
É essa aura que o surrealismo quer tornar visível na realidade aparentemente mais banal, por meio de uma "escrita automática", em que o sentido mais profundo e enigmático, evitando o encadeamento lógico do discurso da razão, poderá surgir das falhas, assim como o inconsciente, da livre associação.
Em "Nadja", tudo é coincidência ilógica. Ela aparece nos momentos e lugares mais inesperados, como se estivesse ligada a tudo o que o autor pensa, vive ou escreve, como se fosse ele próprio. E o texto tenta mimetizar esse mistério, propondo uma narrativa cuja estrutura é a não-estrutura, uma composição de acasos disparatados.
"Nadja" quis revolucionar a literatura pela fragmentação "automática". Quis que o sentido, como na vida, surgisse do não-sentido. Vem daí a possível frustração do leitor de hoje diante desse que, por não dar nenhuma explicação, é o romance antipolicial por excelência, e está muito mais próximo do real do que qualquer uma dessas narrativas de "não-ficção" construídas como roteiros de filmes de Hollywood.


Avaliação:    


Livro: Nadja Autor: André Breton Tradução: Ivo Barroso Editora: Imago Quanto: R$ 18 (152 págs.)

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