São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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WALTER SALLES
Era uma vez na América

"Magnolia", uma visão ácida e desencantada da América, acaba de ganhar o Urso de Ouro em Berlim. Paul Thomas Anderson arrebatou o prêmio com apenas 29 anos de idade, em um festival que também reconheceu o talento de um diretor japonês estreante, Akira Ogata, e de duas jovens atrizes, Bibiana Beglau e Nadja Uhl, que faziam o seu primeiro filme ("As Lendas de Rita", o retorno de Volker Schlöndorff a um cinema denso e bem narrado).
Se a Academia referendar o excelente "Beleza Americana", o primeiro filme de Sam Mendes, estará dada a partida para uma década de cinema verdadeiramente instigante.
Já não era sem tempo. Desde os anos 70, quando Scorsese, Coppola, Altman e outros cineastas formados na escola da produção independente desvendaram o mal-estar americano e irrigaram o cinema hollywoodiano com obras urgentes e viscerais como "Taxi Driver", "Apocalypse Now" ou "Nashville", a coisa vinha ladeira abaixo.
Nos anos 80, filmes consensuais e acríticos, quando não militaristas (Rambo e seus irmãos), se tornaram a expressão da América intervencionista de Reagan. Porrada na política externa, porradas de Stalone, Schwarzenegger ou Van Damme nas telas.
Nos anos 90, a violência inerente à sociedade americana foi espertamente reciclada por Tarantino. Uma violência igualmente acrítica, agora estilizada e legitimada por citações de Jean-Pierre Melville e John Woo, os heróis fílmicos de Tarantino. Estava aberta a porta para os podres poderes de "Matrix" e "Clube da Luta".
Foi preciso esperar "Felicidade", o filme-bomba de Todd Solondz, para que uma nova desordem fosse anunciada. Em "Felicidade", todo o desajuste do sonho americano é exposto à visitação pública. Personagens solitários e desencantados revelam, ao mesmo tempo, uma agressividade e uma fragilidade insuspeitadas.
O resultado é perturbador. Por causa disso, o público americano olhou para "Felicidade" à distância, recusando-se a se reconhecer naqueles personagens patéticos e sem redenção, e o filme não ultrapassou o gueto independente.
Sem "Felicidade", entretanto, talvez não houvesse "Beleza Americana". O que o filme de Mendes faz com genialidade é trazer o desconforto para perto do espectador comum. Enquanto os personagens do filme de Solondz são "weirdos", tão estranhos que permitem escapar do processo de identificação, os de "Beleza Americana" parecem vizinhos do americano médio. Impossível não reconhecê-los ou mesmo simpatizar com eles.
Estabelecido o processo de identificação, Sam Mendes passa então a conduzir uma lenta e corrosiva desconstrução daqueles seres aparentemente "normais". O resultado é um dos filmes mais inteligentes dos últimos anos, comprovando que é possível propor uma visão vertical de um tema sem alienar o grande público.
Mas não são só "Beleza Americana", "Magnolia" ou "Felicidade" que nos ajudam a entender melhor o pesadelo americano. O meu herói nessa área é o documentarista Michael Moore, diretor do hilariante "Roger e Eu".
Feito em 89, "Roger e Eu" conta as tentativas frustradas de Moore de entrevistar o presidente da General Motors, responsável por demissões em massa na cidade de Flint, no Estado de Michigan. É um clássico do documentário.
Michael Moore volta agora à carga. Acaba de sair a nova versão do seu livro "Downsize This", um olhar tão letal quanto divertido em relação à terra do Tio Sam. Funciona como um complemento perfeito para "Beleza Americana" e "Magnolia".
Alguns exemplos do anarquismo de Moore: o livro lista as melhores maneiras para se entrar ilegalmente nos EUA, revela as sujeiras inacreditáveis cometidas pelas grandes corporações americanas e aponta as localizações ideais para se botar fogo em Beverly Hills em 2002 -para comemorar os 10 anos do levante da população negra de Los Angeles, após o espancamento de Rodney King pela polícia local.
Não resisto a listar algumas outras sugestões contidas no livro:
-Por que não mudar logo o nome dos Estados Unidos? É longo, um porre, e não diz a que veio, diz ele. Moore prefere "The Big One". Donde é que você é? "Sou do Big One", responderia o americano.
-Um novo nome pede logicamente um novo slogan: "Aceita-se cheques" ou "Estamos armados e gostamos de atirar".
-Se é verdade que o acordo de liberalização econômica entre o México e os Estados Unidos (o chamado NAFTA) é tão bom para os dois países, por que não mudar logo o governo de Washington para Tijuana?
Mas há algo no livro de Moore que vai além de um olhar sarcástico. Há também uma radiografia impiedosa do confronto social e racial americano. Pouco a pouco, Moore faz a autópsia de um país em que mais bebês morrem em Washington do que em Havana, que tem mais casos recentes de tuberculose do que o Quênia e onde um em cada quatro jovens negros está preso ou em liberdade condicional.
Uma sociedade doente, que o cinema americano esqueceu de olhar durante duas décadas e que filmes como "Magnolia" ou "Beleza Americana" trazem de volta à tona.


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