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ACADEMIA
Intelectual retorna à graduação para lecionar a alunos do primeiro ano da faculdade de filosofia
Giannotti, quase 70, volta à USP
MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação
Na noite de anteontem, a Faculdade de Filosofia da Universidade
de São Paulo (USP) viveu certamente um de seus momentos históricos. No anfiteatro 111, José Arthur Giannotti, um dos mais importantes intelectuais do país, retomava depois de cerca de duas
décadas de "recesso" suas atividades de docente diante de uma platéia de umas 250 pessoas.
Como para marcar ainda mais o
caráter festivo ou simbólico do
encontro, a aula inaugural aconteceu na véspera dos seus 70 anos,
e lá estavam tanto velhos alunos
seus, hoje professores, quanto calouros que iniciavam ali seu primeiro contato com a filosofia.
A conferência, embora não tivesse relação direta com as aulas
que ele dará neste semestre a alunos do primeiro ano, estabeleceu
o tom do seu curso na cadeira de
"Filosofia Geral" -denominação
que Giannotti faz questão de
manter, em homenagem ao professor Cruz Costa, antigo titular
da cátedra e um dos "pais fundadores" da filosofia uspiana.
Contra Habermas
Debaixo de um calor insuportável, com a platéia em silêncio absoluto, Giannotti começou a conferência dizendo que o texto a ser
apresentado era "colagem do que
venho escrevendo ultimamente".
"Melhor não oferecer aos colegas
coisas requentadas", disse.
Para quem olhasse as janelas do
auditório, a cena era no mínimo
curiosa. Muitas pessoas apinhadas por trás das grades, como se
estivessem presas do lado de fora,
enquanto dentro da sala o calor
aumentava.
Depois de uma rápida referência à "Ideologia Alemã", de Marx,
Giannotti passou a refletir sobre
as noções de finalidade -"de
ponderação entre meios e fins"-
em Max Weber, remetendo à
"Ética" de Aristóteles, a Kant e à
"série de logomaquias da Escola
de Frankfurt".
Em ritmo acelerado e na dicção
grave de sempre, Giannotti estava
em última instância propondo
uma idéia de racionalidade que se
coadunasse com os processos cada vez mais simbólicos e virtuais
gerados pela "nova economia".
"Hoje vocês vão me ouvir falar
muito em dinheiro; é que velho
vai ficando avarento", brincou,
para descontrair a platéia.
O que estava por trás de sua explanação era um ataque à distinção habermasiana entre uma "razão instrumental", basicamente
negativa, e uma "razão comunicativa" -distinção que, segundo
Giannotti, não é capaz de dar conta das complexidades do mundo
contemporâneo.
"Mas não convém pensar este
mundo como caos ou matéria informe", alertou o professor, provavelmente para que não pensassem que ele estava abdicando da
postura racionalista.
Causar espanto
Terminada a conferência, o comentário geral nos corredores
era: "Não entendi nada". Impressão partilhada não só pelos calouros, diga-se de passagem.
Uma aluna do primeiro ano,
que não quis se identificar, confessou que estava desnorteada e
propensa a trancar a disciplina.
"Como vou conseguir acompanhar as aulas?"
Mas a aluna não precisa se assustar tanto. Giannotti garantiu
que ainda não fechou o programa
do curso e que irá modular seu
discurso de acordo com as respostas dos estudantes.
Foi o próprio Giannotti quem,
durante a aula, talvez percebendo
os olhos algo assustados da assistência, disparou: "O trote vocês
estão tendo é aqui", referindo-se
ao calor da sala, mas certamente
aludindo, também, à dificuldade
da palestra.
Tomando-se o trote pelo que ele
de fato é -um rito de passagem,
geralmente traumático-, a observação era bastante pertinente.
Além do calor de banho turco, a
aula foi complexa, pedregosa, no
estilo "exigente, exaltado e obscuro" que o crítico Roberto Schwarz
uma vez atribuiu a ele (em "Um
Seminário de Marx", Cebrap,
"Novos Estudos" nº 50).
"Para que fazer concessões e baratear as coisas? O importante é
provocar o "thaumázein" (o "espanto", que, para os antigos gregos, estava na origem do pensamento filosófico), para que daí
possa ter início o processo da reflexão", comentou o professor
após a conferência.
"Em 1969, quando entrei no
curso de filosofia desta faculdade,
fui um dos muito alunos a quem o
professor Giannotti assustou e
fascinou ao mesmo tempo", lembra Ricardo Terra, hoje professor
do departamento de filosofia.
Mora na filosofia
Certa vez o filósofo espanhol José Gaos, criticado, segundo conta
o cineasta Luis Buñuel, por seu
jargão impenetrável, respondeu
com irritação: "A filosofia é para
os filósofos".
O professor Giannotti certamente deve concordar com ele.
Indagado depois da palestra sobre uma questão política, ele respondeu, separando bem as coisas:
"Agora é a hora da filosofia. Você
acha que eu falaria mal de Paulo
Renato (ministro da Educação)?".
Com efeito, de política não se
tratou naquela noite, muito menos de política interna, embora
Giannotti seja uma figura sempre
presente no debate brasileiro.
Muito menos a platéia se manifestou sobre o assunto. Encerrada
a sessão, palmas, e todos se retiraram aos poucos do auditório
-como aliás convém a rituais
acadêmicos desse tipo. De resto, o
público de hoje é muito diferente
daquele de 20 ou 30 anos atrás.
É bem verdade que as reflexões
de Giannotti sobre a não-validade
do conceito de "razão técnica"
diante do atual sistema produtivo
e das transformações do mundo
do trabalho não deixam de ter implicações políticas.
Mas a discussão se dá em um tal
nível de abstração que parece impedir qualquer desdobramento
dessas idéias numa práxis.
Afinal, é o próprio Giannotti
quem, nas "Considerações Iniciais" a seu livro "Apresentação
do Mundo", confessa sua tendência a encerrar-se num "casulo filosófico".
No entanto, uma coisa é indiscutível: José Arthur Giannotti, o
"mocinho inteligente" evocado
por Antonio Candido -12 anos
mais velho que ele- na sua "Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade" (em "Vários
Escritos"), produziu uma obra intelectual das mais consistentes já
feitas no país. E por isso será sempre lembrado.
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