São Paulo, sábado, 26 de fevereiro de 2000


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ACADEMIA
Intelectual retorna à graduação para lecionar a alunos do primeiro ano da faculdade de filosofia
Giannotti, quase 70, volta à USP

MAURÍCIO SANTANA DIAS
da Redação

Na noite de anteontem, a Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) viveu certamente um de seus momentos históricos. No anfiteatro 111, José Arthur Giannotti, um dos mais importantes intelectuais do país, retomava depois de cerca de duas décadas de "recesso" suas atividades de docente diante de uma platéia de umas 250 pessoas.
Como para marcar ainda mais o caráter festivo ou simbólico do encontro, a aula inaugural aconteceu na véspera dos seus 70 anos, e lá estavam tanto velhos alunos seus, hoje professores, quanto calouros que iniciavam ali seu primeiro contato com a filosofia.
A conferência, embora não tivesse relação direta com as aulas que ele dará neste semestre a alunos do primeiro ano, estabeleceu o tom do seu curso na cadeira de "Filosofia Geral" -denominação que Giannotti faz questão de manter, em homenagem ao professor Cruz Costa, antigo titular da cátedra e um dos "pais fundadores" da filosofia uspiana.

Contra Habermas
Debaixo de um calor insuportável, com a platéia em silêncio absoluto, Giannotti começou a conferência dizendo que o texto a ser apresentado era "colagem do que venho escrevendo ultimamente". "Melhor não oferecer aos colegas coisas requentadas", disse.
Para quem olhasse as janelas do auditório, a cena era no mínimo curiosa. Muitas pessoas apinhadas por trás das grades, como se estivessem presas do lado de fora, enquanto dentro da sala o calor aumentava.
Depois de uma rápida referência à "Ideologia Alemã", de Marx, Giannotti passou a refletir sobre as noções de finalidade -"de ponderação entre meios e fins"- em Max Weber, remetendo à "Ética" de Aristóteles, a Kant e à "série de logomaquias da Escola de Frankfurt".
Em ritmo acelerado e na dicção grave de sempre, Giannotti estava em última instância propondo uma idéia de racionalidade que se coadunasse com os processos cada vez mais simbólicos e virtuais gerados pela "nova economia". "Hoje vocês vão me ouvir falar muito em dinheiro; é que velho vai ficando avarento", brincou, para descontrair a platéia.
O que estava por trás de sua explanação era um ataque à distinção habermasiana entre uma "razão instrumental", basicamente negativa, e uma "razão comunicativa" -distinção que, segundo Giannotti, não é capaz de dar conta das complexidades do mundo contemporâneo.
"Mas não convém pensar este mundo como caos ou matéria informe", alertou o professor, provavelmente para que não pensassem que ele estava abdicando da postura racionalista.

Causar espanto
Terminada a conferência, o comentário geral nos corredores era: "Não entendi nada". Impressão partilhada não só pelos calouros, diga-se de passagem.
Uma aluna do primeiro ano, que não quis se identificar, confessou que estava desnorteada e propensa a trancar a disciplina. "Como vou conseguir acompanhar as aulas?"
Mas a aluna não precisa se assustar tanto. Giannotti garantiu que ainda não fechou o programa do curso e que irá modular seu discurso de acordo com as respostas dos estudantes.
Foi o próprio Giannotti quem, durante a aula, talvez percebendo os olhos algo assustados da assistência, disparou: "O trote vocês estão tendo é aqui", referindo-se ao calor da sala, mas certamente aludindo, também, à dificuldade da palestra.
Tomando-se o trote pelo que ele de fato é -um rito de passagem, geralmente traumático-, a observação era bastante pertinente.
Além do calor de banho turco, a aula foi complexa, pedregosa, no estilo "exigente, exaltado e obscuro" que o crítico Roberto Schwarz uma vez atribuiu a ele (em "Um Seminário de Marx", Cebrap, "Novos Estudos" nº 50).
"Para que fazer concessões e baratear as coisas? O importante é provocar o "thaumázein" (o "espanto", que, para os antigos gregos, estava na origem do pensamento filosófico), para que daí possa ter início o processo da reflexão", comentou o professor após a conferência.
"Em 1969, quando entrei no curso de filosofia desta faculdade, fui um dos muito alunos a quem o professor Giannotti assustou e fascinou ao mesmo tempo", lembra Ricardo Terra, hoje professor do departamento de filosofia.

Mora na filosofia
Certa vez o filósofo espanhol José Gaos, criticado, segundo conta o cineasta Luis Buñuel, por seu jargão impenetrável, respondeu com irritação: "A filosofia é para os filósofos".
O professor Giannotti certamente deve concordar com ele. Indagado depois da palestra sobre uma questão política, ele respondeu, separando bem as coisas: "Agora é a hora da filosofia. Você acha que eu falaria mal de Paulo Renato (ministro da Educação)?".
Com efeito, de política não se tratou naquela noite, muito menos de política interna, embora Giannotti seja uma figura sempre presente no debate brasileiro.
Muito menos a platéia se manifestou sobre o assunto. Encerrada a sessão, palmas, e todos se retiraram aos poucos do auditório -como aliás convém a rituais acadêmicos desse tipo. De resto, o público de hoje é muito diferente daquele de 20 ou 30 anos atrás.
É bem verdade que as reflexões de Giannotti sobre a não-validade do conceito de "razão técnica" diante do atual sistema produtivo e das transformações do mundo do trabalho não deixam de ter implicações políticas.
Mas a discussão se dá em um tal nível de abstração que parece impedir qualquer desdobramento dessas idéias numa práxis.
Afinal, é o próprio Giannotti quem, nas "Considerações Iniciais" a seu livro "Apresentação do Mundo", confessa sua tendência a encerrar-se num "casulo filosófico".
No entanto, uma coisa é indiscutível: José Arthur Giannotti, o "mocinho inteligente" evocado por Antonio Candido -12 anos mais velho que ele- na sua "Digressão Sentimental sobre Oswald de Andrade" (em "Vários Escritos"), produziu uma obra intelectual das mais consistentes já feitas no país. E por isso será sempre lembrado.


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