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São Paulo, quarta-feira, 26 de fevereiro de 2003

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"4.48 PSYCHOSE"

Diante de uma encenação sem concessões, platéia tem de decidir se está diante de blefe ou obra-prima

Público recebe tarefa de buscar tesouro oculto

Lenise Pinheiro/Folha Imagem
A atriz Isabelle Huppert, que apresenta a peça "4.48 Psychose", durante entrevista coletiva realizada anteontem em São Paulo


SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

Como se encenar um texto sobre o suicídio sabendo que sua autora se matou logo após tê-lo escrito? Como um documento autêntico, espécie de mensagem de náufrago, que traz a marca da tragédia em cada palavra a ser reverenciada? Mas Sarah Kane, atriz e diretora, é a primeira a se desautorizar. Não escreveu um bilhete suicida, mas uma peça. A exemplo de Beckett, enfrenta o pior de frente, até que ele faça rir: uma estranha ironia póstuma se depreende desta exposição da dor.
Contendo em si uma narrativa simples -a paixão de uma psicótica pelo médico que a trata, na sua última tentativa de dar sentido para a vida- o texto é antes de tudo uma tentativa formal de reproduzir a experiência psicótica de indiferenciação entre o sonho e a vigília, entre a mente e o mundo. Quase como em um poema concreto, personagens não são diferenciados claramente, palavras se atropelam por assonância na sintaxe artaudiana, chega-se a recitar números apenas, em contagem regressiva para o nada.
Para esse grau zero da escrita, o diretor Claude Régy propôs um grau zero da encenação. Tirou totalmente Kane de seu universo rock'n'roll, como se a morte a tivesse tornado contemporânea de Racine. Colocou-a em um frio universo de palavras e números, projetados em telão, no preciso cenário de Daniel Jeanneteau, e retalhou-a na crua luz de Dominique Bruguière.
Sobretudo, fixou uma atriz diante do público, com extrema escassez de gestos, com uma entonação que não teme o monocórdio, para que cada punho cerrado, cada aceleramento do ritmo, seja um acontecimento. Contava para isso com Isabelle Huppert, a quem o público se habituou a ver no cinema como uma mulher com algo a esconder, graças à sua técnica apurada de sugerir o máximo revelando o mínimo. Sua extrema concentração, sua forte presença apoiada em uma grande beleza natural garantem o que há de hipnótico no espetáculo. Conta com o apoio seguro de Gérard Watkins, no papel do médico que faz contraponto ao desespero com a doçura de seu timbre de voz e suavidade de movimentos, mas se mantém como uma sombra em segundo plano, em uma estratégia claramente beckettiana.
Rápida e claramente o espetáculo expõe suas estratégias e intenções, e a partir daí a responsabilidade é do público. Como uma maquinaria funcionando no vácuo, flerta com a metalinguagem: é uma peça sobre uma pessoa que se expõe diante de uma audiência. Tendo a morte como tema, remete assim irresistivelmente aos solilóquios hamletianos, de uma maneira talvez ainda mais radical: além do dilema sobre o ser ou não ser, falando já depois da vida, é o monólogo da caveira de Yorick na mão de Hamlet.
O humor vem e passa, e o fluxo de palavras não cessa. Dura provação para a platéia. Diante de um espetáculo sem concessões, decidindo a cada minuto se está diante de um blefe ou uma obra-prima, o público se vê como a águia se alimentando do fígado de um Prometeu desmemoriado e sem orgulho, e divide seu suplício. No silêncio que se adensa, cada espirro pode soar como uma blasfêmia. Mergulhando em apnéia na psicologia das profundezas, descobre-se enfim que não haverá mais oxigênio para a volta à superfície, e se tenta pelo menos distinguir em meio às águas turvas algum tesouro desconhecido. O fato de o público não saber ao certo se conseguiu ver ou não esse tesouro é que faz a limitação de "4.48 Psychose" -e sua maravilha.


4.48 Psychose    
Texto: Sarah Kane
Direção: Claude Régy
Com: Isabelle Huppert e Gérard Watkins
Onde: Sesc Consolação - teatro Sesc Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila Buarque, tel. 3256-2281)
Quando: hoje e amanhã, às 21h (ingressos esgotados)



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