|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"4.48 PSYCHOSE"
Diante de uma encenação sem concessões, platéia tem de decidir se está diante de blefe ou obra-prima
Público recebe tarefa de buscar tesouro oculto
Lenise Pinheiro/Folha Imagem
|
A atriz Isabelle Huppert, que apresenta a peça "4.48 Psychose", durante entrevista coletiva realizada anteontem em São Paulo |
SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA
Como se encenar um texto sobre o suicídio sabendo que
sua autora se matou logo após tê-lo escrito? Como um documento
autêntico, espécie de mensagem
de náufrago, que traz a marca da
tragédia em cada palavra a ser reverenciada? Mas Sarah Kane, atriz
e diretora, é a primeira a se desautorizar. Não escreveu um bilhete
suicida, mas uma peça. A exemplo de Beckett, enfrenta o pior de
frente, até que ele faça rir: uma estranha ironia póstuma se depreende desta exposição da dor.
Contendo em si uma narrativa
simples -a paixão de uma psicótica pelo médico que a trata, na
sua última tentativa de dar sentido para a vida- o texto é antes de
tudo uma tentativa formal de reproduzir a experiência psicótica
de indiferenciação entre o sonho e
a vigília, entre a mente e o mundo.
Quase como em um poema concreto, personagens não são diferenciados claramente, palavras se
atropelam por assonância na sintaxe artaudiana, chega-se a recitar
números apenas, em contagem
regressiva para o nada.
Para esse grau zero da escrita, o
diretor Claude Régy propôs um
grau zero da encenação. Tirou totalmente Kane de seu universo
rock'n'roll, como se a morte a tivesse tornado contemporânea de
Racine. Colocou-a em um frio
universo de palavras e números,
projetados em telão, no preciso
cenário de Daniel Jeanneteau, e
retalhou-a na crua luz de Dominique Bruguière.
Sobretudo, fixou uma atriz
diante do público, com extrema
escassez de gestos, com uma entonação que não teme o monocórdio, para que cada punho cerrado, cada aceleramento do ritmo, seja
um acontecimento. Contava para
isso com Isabelle Huppert, a
quem o público se habituou a ver
no cinema como uma mulher
com algo a esconder, graças à sua
técnica apurada de sugerir o máximo revelando o mínimo. Sua
extrema concentração, sua forte
presença apoiada em uma grande
beleza natural garantem o que há
de hipnótico no espetáculo. Conta
com o apoio seguro de Gérard
Watkins, no papel do médico que
faz contraponto ao desespero
com a doçura de seu timbre de
voz e suavidade de movimentos,
mas se mantém como uma sombra em segundo plano, em uma
estratégia claramente beckettiana.
Rápida e claramente o espetáculo expõe suas estratégias e intenções, e a partir daí a responsabilidade é do público. Como uma
maquinaria funcionando no vácuo, flerta com a metalinguagem:
é uma peça sobre uma pessoa que
se expõe diante de uma audiência.
Tendo a morte como tema, remete assim irresistivelmente aos solilóquios hamletianos, de uma maneira talvez ainda mais radical:
além do dilema sobre o ser ou não
ser, falando já depois da vida, é o
monólogo da caveira de Yorick na
mão de Hamlet.
O humor vem e passa, e o fluxo
de palavras não cessa. Dura provação para a platéia. Diante de um
espetáculo sem concessões, decidindo a cada minuto se está diante de um blefe ou uma obra-prima, o público se vê como a águia
se alimentando do fígado de um
Prometeu desmemoriado e sem
orgulho, e divide seu suplício. No
silêncio que se adensa, cada espirro pode soar como uma blasfêmia. Mergulhando em apnéia na psicologia das profundezas, descobre-se enfim que não haverá
mais oxigênio para a volta à superfície, e se tenta pelo menos distinguir em meio às águas turvas algum tesouro desconhecido. O
fato de o público não saber ao certo se conseguiu ver ou não esse tesouro é que faz a limitação de
"4.48 Psychose" -e sua maravilha.
4.48 Psychose
Texto: Sarah Kane
Direção: Claude Régy
Com: Isabelle Huppert e Gérard Watkins
Onde: Sesc Consolação - teatro Sesc
Anchieta (r. Dr. Vila Nova, 245, Vila
Buarque, tel. 3256-2281)
Quando: hoje e amanhã, às 21h (ingressos esgotados)
Texto Anterior: Personalidade: Parceiro de Fellini, o ídolo italiano Alberto Sordi morre aos 82 anos Próximo Texto: "A verdade é ambígua", diz Isabelle Huppert Índice
|