São Paulo, segunda-feira, 26 de março de 2001

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ARIANO SUASSUNA

Despedida

ALMANAQUE ARMORIAL
Grande Logogrifo Brasileiro da Arte, do Real e da Beleza, contendo idéias, enigmas, lembranças, informações, comentários e a narração de casos acontecidos ou inventados, escritos em prosa e verso e reunidos, num Livro Negro do Cotidiano, pelo Bacharel em Filosofia e Licenciado em Artes Ariano Suassuna

AUGUSTO DOS ANJOS E JOSÉ LINS DO REGO

Hoje, dois anos depois de tê-la iniciado, encerro minha colaboração aqui na Folha. E quero fazê-lo comentando a excelente matéria que William Costa publicou no jornal A União, da Paraíba, a respeito do meu voto em Augusto dos Anjos para "o paraibano do século".
No exemplar anterior deste Almanaque, comparei Augusto dos Anjos a Euclydes da Cunha. William Costa subscreve a comparação e alinha textos daqueles dois grandes escritores para mostrar que ela não é desarrazoada. O texto de Os Sertões foi por ele retirado daquela página em que, comentando o encontro do corpo ressecado de um alferes morto pelos guerrilheiros de Canudos, Euclydes da Cunha escreve:
"Nem um verme, o mais vulgar dos trágicos analistas da matéria, lhe maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida sem decomposição repugnante, numa exaustão imperceptível. Era um aparelho revelando de modo absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares".
O de Augusto dos Anjos é do soneto Psicologia de um Vencido:
"Já o verme, este operário das ruínas que o sangue podre das carnificinas come, e à vida, em geral, declara guerra, anda a espreitar meus olhos para roê-los, e há de deixar-me apenas os cabelos, na frialdade inorgânica da terra".
William Costa fez referência, ainda, ao fato de que eu lamentei não ter sido considerado um dos dez paraibanos do século o poeta popular Leandro Gomes de Barros, autor de mais de mil folhetos da literatura de cordel e proposto, por Carlos Drummond de Andrade, para "príncipe dos poetas brasileiros". Assim como afirmei que também deveria ter entrado na lista pelo menos uma mulher, Anayde Beiriz, que (lembro agora) eu preferiria a Elba Ramalho, pelo fato de esta, como Celso Furtado e eu, graças a Deus estar viva.
Entretanto William Costa ainda se referiu generosamente a outra opinião que emiti no momento de dar meu voto ao poeta de Eu e Outras Poesias:
"Se dependesse de Ariano, os paraibanos do século seriam, pela ordem de importância, Augusto dos Anjos, José Lins do Rego e José Américo de Almeida. Na indicação deste último, outra demonstração dos princípios que regem o caráter de Ariano, haja vista ter sido José Américo um adversário político de sua família".
Para mostrar como, também neste caso (e como afirmei sobre Augusto dos Anjos), minha admiração é antiga, transcrevo as seguintes palavras, publicadas por mim em 1967:
"Comumente, quando se fala na obra de José Lins do Rego, é numa referência ao ciclo da cana-de-açúcar ou principalmente a Fogo Morto, romance que é considerado sua obra-prima. (...) No entanto, a meu ver, a obra mais forte do escritor paraibano é a grande Gesta de Aparício, nome que inventei para batizar o romance único que José Lins do Rego separou em dois títulos: Pedra Bonita e Cangaceiros. Os dois, juntos, formam uma obra que nada fica a dever a Os Sertões, de Euclydes da Cunha, ou a Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Com a Gesta de Aparício, José Lins do Rego filiou-se a uma tradição da literatura brasileira, a do sertanismo, anterior à dos romances da zona da mata. (...) Na verdade, depois dos regionalistas cearenses do século 19, é com Os Sertões que começa, realmente, o ciclo dos grandes romances do sertão nordestino. (...) Já os romances da Zona da Mata teriam como livros iniciais e fundadores A Bagaceira, de José Américo de Almeida, e Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. (...) Quando escreve seus romances dos engenhos, José Lins do Rego entra pelos caminhos abertos por Gilberto Freyre. Mas, quando escreve a grande gesta sertaneja de Aparício, abandona essa picada e retoma a anterior, aberta por Euclydes da Cunha. E é aí que, instintivamente, como grande escritor que era, permanecendo sempre igual a si mesmo, perde aquele adocicado da cana-de-açúcar, aquele macio de barro massapê da zona da mata, para escrever, num estilo cortante, cheio de arestas, de repetições angustiantes e pedregosas como a paisagem da caatinga sertaneja, um livro duro, desarmonioso, desigual, cruel, violento e forte -uma obra de gênio, inconsciente, intuitiva, "mal-feita" e poderosa. Uma obra cuja prosa, apesar ou por isso mesmo, está muito próxima do Cantar Del Mio Çid.
Assim, no momento em que, para me dedicar mais exclusivamente a meu trabalho de escritor, encerro minha colaboração na Folha, agradeço, nas pessoas de Otavio Frias Filho e Nelson de Sá, a acolhida fraterna que durante dois anos me deram aqui.
Quanto a meus poucos mas escolhidos leitores, despeço-me deles nas pessoas de Eveline Borges, Antonio Nóbrega, Juliana Lima e Paula Arruda. E digo a todos que, se terminava cada exemplar do Almanaque com a frase "continua na próxima semana", concluo o de hoje prometendo que nossa conversa "continua no livro", isto é, no romance que, agora mais livre, tenho esperança de acabar ainda este ano. Até lá, com um grande e afetuoso abraço para todos.



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