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CARLOS HEITOR CONY
O verão do nosso descontentamento
Cada autor, por motivos
mais ou menos óbvios, costuma dar importância ao título
de seu trabalho. Alguns têm facilidade para isso, outros, não -e
me incluo entre os que deixam o
título ao acaso. O mesmo acontece com o nome dos personagens
principais; um amigo, romancista
dos melhores, diz que folheia o catálogo de telefones aleatoriamente e acaba descobrindo um nome
que tem alguma coisa a ver com o
tipo que está criando.
Outros autores, mais compenetrados, que se levam a sério, folheiam não o catálogo de telefone,
mas a Bíblia ou as obras completas de Shakespeare, e paro por
aqui, pois é esse o meu tema de
hoje.
Bem verdade que Hemingway
preferiu um verso de John Donne
("Por Quem os Sinos Dobram"),
mas Faulkner ("O Som e a Fúria") e John Steinbeck ("O Inverno de Nosso Descontentamento")
ficaram mesmo em Shakespeare,
que me parece a fonte mais abundante de bons títulos.
E é nele que desejo chegar, corrigindo o texto do poeta e o título
do romancista. Se tivesse tempo e
espaço, escreveria agora um ensaio sobre o verão de nosso descontentamento. Estamos chegando ao fim da estação, ditosa entre
todas, sobretudo aqui no Rio, onde há verão por fora e por dentro
de nós, habituados ao sol, ao mar
e às frivolidades estivais que incluem desde o Carnaval até a eleição da musa que nos inspirará
durante os dias de canícula.
Neste ano, o verão foi um fracasso. Até o calor foi relativamente pouco, fragmentado, as caras
bronzeadas rarearam e as praias,
se ficaram cheias, não foi por causa do verão, mas do mar; elas se
enchem em qualquer mês do ano.
Os dois casos mais espetaculares
da temporada nada tiveram com
a cidade e com o calor. Foram esquisitos, talvez lamentáveis. Luma de Oliveira se embananou
com uma gravidez psicológica
(ou quem sabe lógica), um bombeiro virou celebridade mesmo
sem fogo à vista, Zeca Pagodinho
criou um caso com as cervejas que
se uniram ou se desuniram numa
guerra incompreensível para
mim -nunca entendi de guerras,
nem as púnicas, de antes de Cristo, nem a dos Cem Dias, depois do
mesmo. E menos ainda a do Iraque.
Foi um verão tão ruim que até o
Jorginho Guinle se mandou, ele
que parecia eterno ali em volta da
piscina do Copa. Hotéis e bares tiveram prejuízo com os dias nublados, e as garotas de Ipanema,
coisas mais lindas e cheias de graça, a caminho da praia, chamavam atenção com suas deploráveis tatuagens, e não mais com o
famoso balanço cantado pelo
poeta.
Sim, um verão do nosso descontentamento. Para piorar o que estava pior, fiz pequena operação
na vista que me obrigou ao uso de
uns óculos escuros, daqueles que
nos coloca em pé de igualdade
com os bicheiros, os cafetões e cafajestes em geral.
Habituado a ver o lado negro
da vida e de mim próprio, com os
óculos receitados pelo oftalmologista me superei. Já me habituara
a ver o mundo sombrio, mas não
imaginava que ele podia ficar
mais sombrio ainda. Tentei procurar na Bíblia ou nas obras completas de Shakespeare uma frase
ou um nome que definisse a situação. Mas tinha dificuldade de ler,
o que não chegou a ser uma novidade para os meus lados; aprendi
as chamadas primeiras letras na
base de muito cascudo que o pai
me dava. Desesperado, um dia ele
disse que as minhas primeiras letras seriam as últimas, o que lhe
pouparia trabalho e esperança no
meu futuro.
Mas voltemos ao verão que
quase não houve. Podia ter sido
pior, com enchentes, desmoronamentos, feridos e mortos nas encostas dos nossos morros, que são
muitos e ásperos. Lembro verão
antigo, em que a enchente encheu
a garagem subterrânea do prédio
em que morava, em Copacabana.
Vi o meu Simca-Chambord
boiando; aliás, não vi o meu carro, que estava coberto pela água
da enchente que se misturara
com a da maré alta. Apesar dos
prejuízos (os cariocas ficaram
também sem luz, sem água e sem
gás durante três dias), achei tudo
divertido, comprei uns lampiões
de acetileno, tomava banho com
água mineral Lindoya e um vizinho me emprestava um fogareiro
a álcool que deu para quebrar o
galho e a fome.
Além de divertido, foi um verão
de grande densidade, vivia sozinho e mal acompanhado por
amigas que dividiram comigo os
banhos com água mineral e os
ovos com bacon que elas faziam
nos fogareiros a álcool.
Como naquele poema de Villon,
foram "neiges d'antan", coisas de
outrora. Um verão de contentamentos inocentes e outros não
tanto, mas que dividiriam a minha vida em antes e depois. Associei o verão à passagem pelo rubicão particular, uma travessia
marcada pelo calor, pelas enchentes, pelos banhos de água mineral
e pelos ovos com bacon com cheiro de álcool.
Outro dia, numa eleição na
Academia, o presidente da mesa
queimou num enorme tacho os
votos que elegeram um novo acadêmico. Jogou álcool nas cédulas,
para facilitar a combustão e
apressar o fim da sessão. O cheiro
do álcool queimado me fez lembrar daquele verão antigo, um verão de contentamento, bem diferente deste que está indo embora,
sem cheiros. Um verão pior do
que o inverno que nunca temos,
mas com o descontentamento das
coisas que não aconteceram.
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