São Paulo, sexta-feira, 26 de março de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

O verão do nosso descontentamento

Cada autor, por motivos mais ou menos óbvios, costuma dar importância ao título de seu trabalho. Alguns têm facilidade para isso, outros, não -e me incluo entre os que deixam o título ao acaso. O mesmo acontece com o nome dos personagens principais; um amigo, romancista dos melhores, diz que folheia o catálogo de telefones aleatoriamente e acaba descobrindo um nome que tem alguma coisa a ver com o tipo que está criando.
Outros autores, mais compenetrados, que se levam a sério, folheiam não o catálogo de telefone, mas a Bíblia ou as obras completas de Shakespeare, e paro por aqui, pois é esse o meu tema de hoje.
Bem verdade que Hemingway preferiu um verso de John Donne ("Por Quem os Sinos Dobram"), mas Faulkner ("O Som e a Fúria") e John Steinbeck ("O Inverno de Nosso Descontentamento") ficaram mesmo em Shakespeare, que me parece a fonte mais abundante de bons títulos.
E é nele que desejo chegar, corrigindo o texto do poeta e o título do romancista. Se tivesse tempo e espaço, escreveria agora um ensaio sobre o verão de nosso descontentamento. Estamos chegando ao fim da estação, ditosa entre todas, sobretudo aqui no Rio, onde há verão por fora e por dentro de nós, habituados ao sol, ao mar e às frivolidades estivais que incluem desde o Carnaval até a eleição da musa que nos inspirará durante os dias de canícula.
Neste ano, o verão foi um fracasso. Até o calor foi relativamente pouco, fragmentado, as caras bronzeadas rarearam e as praias, se ficaram cheias, não foi por causa do verão, mas do mar; elas se enchem em qualquer mês do ano.
Os dois casos mais espetaculares da temporada nada tiveram com a cidade e com o calor. Foram esquisitos, talvez lamentáveis. Luma de Oliveira se embananou com uma gravidez psicológica (ou quem sabe lógica), um bombeiro virou celebridade mesmo sem fogo à vista, Zeca Pagodinho criou um caso com as cervejas que se uniram ou se desuniram numa guerra incompreensível para mim -nunca entendi de guerras, nem as púnicas, de antes de Cristo, nem a dos Cem Dias, depois do mesmo. E menos ainda a do Iraque.
Foi um verão tão ruim que até o Jorginho Guinle se mandou, ele que parecia eterno ali em volta da piscina do Copa. Hotéis e bares tiveram prejuízo com os dias nublados, e as garotas de Ipanema, coisas mais lindas e cheias de graça, a caminho da praia, chamavam atenção com suas deploráveis tatuagens, e não mais com o famoso balanço cantado pelo poeta.
Sim, um verão do nosso descontentamento. Para piorar o que estava pior, fiz pequena operação na vista que me obrigou ao uso de uns óculos escuros, daqueles que nos coloca em pé de igualdade com os bicheiros, os cafetões e cafajestes em geral.
Habituado a ver o lado negro da vida e de mim próprio, com os óculos receitados pelo oftalmologista me superei. Já me habituara a ver o mundo sombrio, mas não imaginava que ele podia ficar mais sombrio ainda. Tentei procurar na Bíblia ou nas obras completas de Shakespeare uma frase ou um nome que definisse a situação. Mas tinha dificuldade de ler, o que não chegou a ser uma novidade para os meus lados; aprendi as chamadas primeiras letras na base de muito cascudo que o pai me dava. Desesperado, um dia ele disse que as minhas primeiras letras seriam as últimas, o que lhe pouparia trabalho e esperança no meu futuro.
Mas voltemos ao verão que quase não houve. Podia ter sido pior, com enchentes, desmoronamentos, feridos e mortos nas encostas dos nossos morros, que são muitos e ásperos. Lembro verão antigo, em que a enchente encheu a garagem subterrânea do prédio em que morava, em Copacabana. Vi o meu Simca-Chambord boiando; aliás, não vi o meu carro, que estava coberto pela água da enchente que se misturara com a da maré alta. Apesar dos prejuízos (os cariocas ficaram também sem luz, sem água e sem gás durante três dias), achei tudo divertido, comprei uns lampiões de acetileno, tomava banho com água mineral Lindoya e um vizinho me emprestava um fogareiro a álcool que deu para quebrar o galho e a fome.
Além de divertido, foi um verão de grande densidade, vivia sozinho e mal acompanhado por amigas que dividiram comigo os banhos com água mineral e os ovos com bacon que elas faziam nos fogareiros a álcool.
Como naquele poema de Villon, foram "neiges d'antan", coisas de outrora. Um verão de contentamentos inocentes e outros não tanto, mas que dividiriam a minha vida em antes e depois. Associei o verão à passagem pelo rubicão particular, uma travessia marcada pelo calor, pelas enchentes, pelos banhos de água mineral e pelos ovos com bacon com cheiro de álcool.
Outro dia, numa eleição na Academia, o presidente da mesa queimou num enorme tacho os votos que elegeram um novo acadêmico. Jogou álcool nas cédulas, para facilitar a combustão e apressar o fim da sessão. O cheiro do álcool queimado me fez lembrar daquele verão antigo, um verão de contentamento, bem diferente deste que está indo embora, sem cheiros. Um verão pior do que o inverno que nunca temos, mas com o descontentamento das coisas que não aconteceram.


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