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LIVROS/LANÇAMENTOS
Em "Sobre a Literatura", análises sedutoras do italiano Umberto Eco vão de Aristóteles a Wilde, Marx e Borges
Dom-juan das LETRAS
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Dom-juan das letras, Umberto Eco é um crítico sedutor. Por mais que possamos apor
restrições à sua assumida "escritura neobarroca", à sua persistência na eleição da semiótica como
modelo único da crítica de arte e à
deselegância de chamar de "leitor
superficial" quem não lhe aprecia
as digressões romanescas, é difícil
não se encantar pelas análises do
autor em "Sobre a Literatura".
Há três razões principais para
isso. A primeira, a despeito do adjetivo neobarroco do parágrafo
anterior (na verdade, Eco o usa
para definir seus romances, em
oposição à prosa "clássica" de Jorge Luis Borges), está no texto claro, didático, em que o objetivo do
ensaio costuma ser definido nos
parágrafos iniciais e desenvolvido
nos moldes da antiga retórica. O
que prova que, para falar de Lacan
ou da pós-modernidade, não é
preciso ser obscuro.
Em seguida, temos sua conhecida erudição, que lhe possibilita
percorrer com igual desenvoltura
a geografia de luz do "Paraíso" de
Dante, as brumas de "Sylvie", de
Gérard de Nerval, as elucubrações
medievais acerca da língua perfeita, a estratégia argumentativa do
"Manifesto Comunista" e o universo de Flash Gordon.
A terceira razão reside em algo
pouco notado, mas admitido pelo
autor no último ensaio do livro
("Como Escrevo"): seu propósito
de elaborar críticas à maneira de
uma narração. Conta Eco que um
dos relatores de sua tese de graduação se queixou de que o autor
contava todo o caminho de suas
idéias, incluindo aí as hipóteses e
as pistas falsas. Eco não só concordou com a crítica, negativa,
mas ainda inverteu-lhe o sinal,
tornando-a positiva e seguindo,
desde então, tal modelo de pesquisa "contada".
Essa confissão esclarece parte
do deleite digamos "literário" dos
ensaios e ainda dá uma boa pista
para entender o Eco ficcionista.
Em seus melhores momentos, para além dos enredos escalafobéticos e clichês romanescos, somos
convidados a penetrar em densa
selva de referências eruditas.
Diz o italiano: "Depois que me
pus a escrever histórias, [estas"
não poderiam ser outra coisa senão o registro de uma pesquisa".
Ou seja, se Eco de certa forma, como ensaísta, sempre foi narrador,
como narrador, nunca deixou de
ser ensaísta.
"Como Escrevo" ainda revela a
razão dos defeitos (que ele considera acertos) de obras como "O
Pêndulo de Foucault". Para que
um dos personagens pudesse incluir seus registros no computador, Eco foi forçado a uma longa
digressão, de 1968 a 1983, quando
os PCs com editor de texto começaram a ser vendidos na Itália. Por
conta da restrição histórica, sacrificou a forma do romance.
Seu conservadorismo formal
supera o mais realista dos realistas. Henry James, por exemplo,
não deu pelota quando criou, em
"Os Papéis de Aspern", um poeta
norte-americano à Byron -ainda que isso fosse historicamente
impossível na época em que o autor fez viver Jeffrey Aspern. Mas
Eco, ao contrário de James, não
admite licença poética.
Aparentemente menos rigoroso
com seus presentes textos de crítica, faz comparações de impacto,
como quando aproxima a estrutura do Paraíso dantesco ("Leitura do Paraíso") à energia pura intergaláctica e seu efeito no leitor,
ao barato do ecstasy; ou quando
afirma que Borges previu o hipertexto ("Entre La Mancha e Babel"); ou ainda quando sugere
que, por sua eficácia retórica, o
"Manifesto Comunista", de Marx
e Engels ("Sobre o Estilo do "Manifesto'"), deveria ser estudado
em escolas de publicidade.
O tom descontraído se deve ao
fato de que muitos dos ensaios de
"Sobre a Literatura" (a maior parte dos anos 1990) foram extraídos
de textos para congressos. Obrigam-se portanto aos recursos discursivos destinados a evitar o tédio da platéia. Menos acessíveis
são os artigos em que Eco desce à
análise da linguagem, como "Les
Sémaphores sous la Pluie", em
que investiga a hipotipose, técnica
de representação verbal do espaço; ou "Wilde. Paradoxo e Aforismo", sobre a presença dessas figuras no discurso de Oscar Wilde.
Ainda temos, dentre outros, "A
Poética e Nós", sobre o legado da
"Poética" e da "Retórica" de Aristóteles; "The Portrait of the Artist
as a Bachelor", sobre como, nas
primeiras obras de James Joyce,
podemos entrever tanto "Ulisses"
quanto "Finnegans Wake"; e "A
Força do Falso", sobre como mitos e equívocos movem a história.
Não é tão árido quanto parece.
Se o leitor concordar que Eco é
melhor narrador (exceto, talvez,
no caso de "O Nome da Rosa")
sobretudo quando apresenta seus
argumentos críticos, então é possível que descubra aqui ampla
margem para a diversão.
Sobre a Literatura
Autor: Umberto Eco
Editora: Record
Quanto: R$ 38 (308 págs.)
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