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São Paulo, segunda-feira, 26 de maio de 2003

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ARTES PLÁSTICAS

A aventura de Paul Gauguin e o crime de ser ele mesmo

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Como você vê essas árvores? Amarelas? Pois então ponha no quadro o amarelo mais forte da sua paleta. A sombra você vê como? Ela está mais para o azul? Pinte-a com o azul do além-mar, puro. E as folhas? Vermelhas? Ponha um vermelhão." A isso Gauguin (1848-1903) acrescenta que o artista deve pintar o que sente e não o que vê, subvertendo as convenções acadêmicas. Tudo menos a pintura fotográfica, a reprodução fiel da realidade.
A Emile Schuffenecker, um dos seus discípulos, diz: "A arte é uma abstração. Procure extraí-la da natureza, sonhando com a natureza. Pense na criação que há de resultar. Você só chega a Deus se criar". Nesse caminho concebeu o sintetismo, que preconiza o uso das cores puras e os contornos bem delineados. Opôs-se aos academicistas e se distanciou dos impressionistas, por quem foi reconhecido como revolucionário. Pissaro e Degas o convidaram a se juntar às exposições do grupo.
A aventura de Paul Gauguin foi a de ser ele mesmo, seguir a própria via. Cometeu esse crime e pagou com a sua pessoa. Apesar de já consagrado, em 1886, teve que emprestar dinheiro para uma passagem de trem de Paris a Pont-Aven, na Bretanha, a capital mundial da arte por três décadas. Capital que nasceu com a chegada de Robert Wylie, em 1864, e cresceu com a de outros americanos, além de pintores europeus, que se instalaram deixando-se seduzir pela beleza pitoresca do burgo, a amenidade da luz e a natureza selvagem dos arredores.
Nessa cidadezinha, Gauguin viveu a sua aventura antes de ir para o Taiti. Ali encontrou Émile Bernard -erroneamente considerado o fundador do sintetismo, Charles Laval, Schuffenecker, Puigaudeau, Delavallée, Moret, Jourdan, Filiger, Chamaillard, Meyer de Haan, os seus discípulos. O movimento que surgiu teve uma influência imensa. Depois de Pont-Aven já não se pintará da mesma maneira. O sintetismo antecipou o fovismo, anunciou o expressionismo, abriu a via para a abstração e prefigurou a arte pop.
Entende-se por que as comemorações do centenário de Gauguin em Paris começaram com a mostra "A Aventura de Pont-Aven" no Museu de Luxemburgo, que Gauguin chamou de prostíbulo quando seus quadros foram recusados. Nem "reparação simbólica", como diz o catálogo, nem "vingança póstuma". Antes um convite à meditação sobre a força da arte verdadeira, a que reivindica o direito à expressão da subjetividade e por isso inova e dura. Uma arte virulentamente moderna e eterna. De quem não apostou no mercado. Ousou o Tempo.


Betty Milan é escritora e psicanalista, autora de "O Papagaio e o Doutor" e "A Paixão de Lia", entre outros


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