São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2004

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MARCELO COELHO

A mesma história, de cabeça para baixo

Reclama-se muito, e com bons motivos, dos filmes de ação americanos. Dos filmes de terror também. E das comédias. E dos dramas. Parece que um mesmo "blockbuster" está sendo refeito infinitas vezes. Afinal, deu lucro.
Não vou defender esse tipo de cinema. A quantidade de apelação, de clichês, de violência física e intelectual da maior parte dos filmes de Hollywood nem precisa ser mencionada. Nada mais repetitivo, entretanto, do que os filmes iranianos da década passada, e não era exatamente por razões comerciais que determinada situação -digamos, a criança procurando alguém ou alguma coisa em meio a adultos indiferentes- era reencenada com freqüência naquelas produções.
É que o uso de uma mesma fórmula, de uma idéia fixa, de um lugar-comum, não é característica só de Hollywood ou do mau cinema. Provavelmente, toda escola cinematográfica nacional (o neo-realismo italiano, a nouvelle vague francesa, o cinema novo brasileiro) procurava, até para formar sua identidade estética, convergir em alguns poucos temas, fórmulas e preocupações.
Hoje em dia, reconheço nos mais diversos filmes, seja de onde vierem, um mesmo tema. Está presente, por exemplo, em "Adeus, Lênin!", boa comédia alemã de Wolfgang Becker, há várias semanas em cartaz em São Paulo.
A história se passa em Berlim Oriental, em 1989. Uma senhora de 60 e poucos anos, comunista convicta, entra em coma. Cai o Muro. Ela vai se recuperando aos poucos. Não resistirá, provavelmente, à notícia de que o comunismo foi varrido em poucos dias. Seu filho faz todo tipo de proeza para lhe esconder os fatos. Forja noticiários de TV, em que as antigas autoridades continuam firmes e fortes; durante meses, consegue prover a casa com as tradicionais (e péssimas) marcas de pepino em conserva, pó de café e geléia que eram consumidas nos áureos tempos do regime. Sua obra-prima de imaginação será a de convencer a mãe que o imenso cartaz de Coca-Cola que ela vê da janela do apartamento não representa nenhuma vitória dos capitalistas.
Voltando um pouco atrás no tempo, "A Vida É Bela", de Roberto Benigni, mostrava um pai convencendo milagrosamente o filho de que o campo de concentração nazista em que eles estavam presos era na realidade um grande parque de diversões. No equivalente simétrico desse filme, "O Trem da Vida", os habitantes de uma aldeia judia na Europa Central construíam uma perfeita imitação de comboio nazista para escapar de seus perseguidores.
Para falar novamente de Hollywood, tanto "O Show de Truman" quanto "Matrix" exploram variantes da mesma idéia: a construção de uma realidade virtual, capaz de enganar perfeitamente -ou quase- um ou mais personagens da trama. Nesse "quase" talvez esteja toda a diferença, aliás.
Também no teatro o tema reaparece. Em "Veneza", comédia do argentino Jorge Accame adaptada por Miguel Falabella, trata-se de convencer a dona de um bordel, velha, cega e sem dinheiro, de que está realizando uma sonhada viagem à Itália. Dois ventiladores simulam as hélices do avião, e um liquidificador faz o barulho das turbinas. Para construir a gôndola, servem alguns caixotes, enquanto provém de uma bacia a água dos canais.
Estamos, é claro, longe de Las Vegas e do Epcot Center, onde a duplicação da realidade mobiliza recursos de outra ordem. No caso de "Veneza", parece um tanto incrível, para o espectador, que a pobre mulher acredite na precária farsa que foi montada.
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) definiu famosamente a fé poética como uma "voluntária suspensão da descrença". Talvez fosse o caso de dizer que, no teatro, essa suspensão da descrença tem de ser bem mais voluntária do que no cinema... Conta-se mais com a boa vontade do espectador; do mesmo modo, os filmes americanos suspendem nossa descrença com muito mais violência do que os europeus, por exemplo.
Formulo uma hipótese para terminar. Quando Hollywood trata da realidade virtual, da capacidade tecnológica contemporânea de simplesmente eliminar a diferença entre o real e o construído, o que está em jogo é a autoconsciência, crepuscular e virtuosística, da velha e eficiente "fábrica de ilusões" do cinema americano. O mundo dos efeitos especiais, das reproduções detalhadas e enganadoras da realidade, volta-se sobre si mesmo, contempla seu próprio poder. Depois de Reagan ter assumido a Presidência dos Estados Unidos, depois de os jogos de computador simularem a guerra e vice-versa, é como se o cinema tradicional, dos estúdios, platéias e bilheterias, estivesse a um passo de se tornar arcaico -tão arcaico quanto o comunismo para cuja derrota contribuiu enormemente.
Seu poder manipulatório é reconhecido e tematizado, à medida que chega ao ponto da própria superação. Justamente por isso, os "outros" cinemas (o brasileiro, o europeu, o pós-soviético, o oriental, para não falar do teatro) estão contando a mesma história, de cabeça para baixo. Contam seus próprios esforços, sem dúvida menos bem-sucedidos, e mais poéticos, de criar ilusão no espectador.
Quase todo filme brasileiro da retomada, aliás, poderia ser entendido como uma metáfora sobre as dificuldades que cercaram sua própria produção. Mas isso já seria outra hipótese, e não quero abusar da descrença do leitor.


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