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MARCELO COELHO
A mesma história, de cabeça para baixo
Reclama-se muito, e com
bons motivos, dos filmes de
ação americanos. Dos filmes de
terror também. E das comédias. E
dos dramas. Parece que um mesmo "blockbuster" está sendo refeito infinitas vezes. Afinal, deu
lucro.
Não vou defender esse tipo de
cinema. A quantidade de apelação, de clichês, de violência física
e intelectual da maior parte dos
filmes de Hollywood nem precisa
ser mencionada. Nada mais repetitivo, entretanto, do que os filmes
iranianos da década passada, e
não era exatamente por razões
comerciais que determinada situação -digamos, a criança procurando alguém ou alguma coisa
em meio a adultos indiferentes-
era reencenada com freqüência
naquelas produções.
É que o uso de uma mesma fórmula, de uma idéia fixa, de um
lugar-comum, não é característica só de Hollywood ou do mau cinema. Provavelmente, toda escola cinematográfica nacional (o
neo-realismo italiano, a nouvelle
vague francesa, o cinema novo
brasileiro) procurava, até para
formar sua identidade estética,
convergir em alguns poucos temas, fórmulas e preocupações.
Hoje em dia, reconheço nos
mais diversos filmes, seja de onde
vierem, um mesmo tema. Está
presente, por exemplo, em
"Adeus, Lênin!", boa comédia
alemã de Wolfgang Becker, há
várias semanas em cartaz em São
Paulo.
A história se passa em Berlim
Oriental, em 1989. Uma senhora
de 60 e poucos anos, comunista
convicta, entra em coma. Cai o
Muro. Ela vai se recuperando aos
poucos. Não resistirá, provavelmente, à notícia de que o comunismo foi varrido em poucos dias.
Seu filho faz todo tipo de proeza
para lhe esconder os fatos. Forja
noticiários de TV, em que as antigas autoridades continuam firmes e fortes; durante meses, consegue prover a casa com as tradicionais (e péssimas) marcas de
pepino em conserva, pó de café e
geléia que eram consumidas nos
áureos tempos do regime. Sua
obra-prima de imaginação será a
de convencer a mãe que o imenso
cartaz de Coca-Cola que ela vê da
janela do apartamento não representa nenhuma vitória dos capitalistas.
Voltando um pouco atrás no
tempo, "A Vida É Bela", de Roberto Benigni, mostrava um pai
convencendo milagrosamente o
filho de que o campo de concentração nazista em que eles estavam presos era na realidade um
grande parque de diversões. No
equivalente simétrico desse filme,
"O Trem da Vida", os habitantes
de uma aldeia judia na Europa
Central construíam uma perfeita
imitação de comboio nazista para escapar de seus perseguidores.
Para falar novamente de Hollywood, tanto "O Show de Truman" quanto "Matrix" exploram
variantes da mesma idéia: a construção de uma realidade virtual,
capaz de enganar perfeitamente
-ou quase- um ou mais personagens da trama. Nesse "quase"
talvez esteja toda a diferença,
aliás.
Também no teatro o tema reaparece. Em "Veneza", comédia do
argentino Jorge Accame adaptada por Miguel Falabella, trata-se
de convencer a dona de um bordel, velha, cega e sem dinheiro, de
que está realizando uma sonhada
viagem à Itália. Dois ventiladores
simulam as hélices do avião, e um
liquidificador faz o barulho das
turbinas. Para construir a gôndola, servem alguns caixotes, enquanto provém de uma bacia a
água dos canais.
Estamos, é claro, longe de Las
Vegas e do Epcot Center, onde a
duplicação da realidade mobiliza
recursos de outra ordem. No caso
de "Veneza", parece um tanto incrível, para o espectador, que a
pobre mulher acredite na precária farsa que foi montada.
Samuel Taylor Coleridge (1772-1834) definiu famosamente a fé
poética como uma "voluntária
suspensão da descrença". Talvez
fosse o caso de dizer que, no teatro, essa suspensão da descrença
tem de ser bem mais voluntária
do que no cinema... Conta-se
mais com a boa vontade do espectador; do mesmo modo, os filmes
americanos suspendem nossa
descrença com muito mais violência do que os europeus, por
exemplo.
Formulo uma hipótese para terminar. Quando Hollywood trata
da realidade virtual, da capacidade tecnológica contemporânea
de simplesmente eliminar a diferença entre o real e o construído,
o que está em jogo é a autoconsciência, crepuscular e virtuosística, da velha e eficiente "fábrica de
ilusões" do cinema americano. O
mundo dos efeitos especiais, das
reproduções detalhadas e enganadoras da realidade, volta-se sobre si mesmo, contempla seu próprio poder. Depois de Reagan ter
assumido a Presidência dos Estados Unidos, depois de os jogos de
computador simularem a guerra
e vice-versa, é como se o cinema
tradicional, dos estúdios, platéias
e bilheterias, estivesse a um passo
de se tornar arcaico -tão arcaico
quanto o comunismo para cuja
derrota contribuiu enormemente.
Seu poder manipulatório é reconhecido e tematizado, à medida que chega ao ponto da própria
superação. Justamente por isso, os
"outros" cinemas (o brasileiro, o
europeu, o pós-soviético, o oriental, para não falar do teatro) estão contando a mesma história,
de cabeça para baixo. Contam
seus próprios esforços, sem dúvida
menos bem-sucedidos, e mais
poéticos, de criar ilusão no espectador.
Quase todo filme brasileiro da
retomada, aliás, poderia ser entendido como uma metáfora sobre as dificuldades que cercaram
sua própria produção. Mas isso já
seria outra hipótese, e não quero
abusar da descrença do leitor.
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