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TEATRO
Com o grupo Uzyna Uzona, diretor promove "maratona" com quase 20 horas de sua versão da obra de Euclydes da Cunha
Zé Celso instaura o sertão na Alemanha
MARCOS DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A RECKLINGHAUSEN
"O público alemão não pisca",
disse o encenador Bob Wilson ao
dramaturgo e diretor Heiner Müller, em uma de suas apresentações na Alemanha. Foi com os
olhos arregalados que a platéia
alemã assistiu à maratona de quatro espetáculos do épico "Os Sertões", ou "Krieg im Sertao"
("Guerra no Sertão"), encenada
por Zé Celso e o Uzyna Uzona e
que terminou no domingo.
A companhia, que reapresenta
as peças no próximo final de semana, é a atração principal do festival de teatro Ruhrfestspiele, em
Recklinghausen, uma pequena cidade na região do Ruhr, no oeste
da Alemanha. Numa reprodução
fiel do teatro Oficina, construída
dentro de um galpão de uma mina de carvão desativada, o público
acompanhou, incansável, as quatro partes da saga inspirada no romance de Euclydes da Cunha: "A
Terra", "O Homem - Parte 1", "O
Homem - Parte 2" e um ensaio
aberto de "A Luta", que somam
quase 20 horas de espetáculo.
Aos primeiros toques da batucada que abre "A Terra", a perplexidade dos olhos atentos da estudante Kama Frankl, 18, de Recklinghausen, deu lugar às lágrimas. "Comecei a chorar. Eles
olhavam profundamente, dentro
dos meus olhos." O "olho no
olho" e o toque desinibido dos
atores foi muito comentado pela
platéia, que surpreendeu as expectativas ao se misturar com os
atores e dançar o "miudinho".
"É muito diferente do teatro alemão, não diz somente ao intelecto. Ficou mais fácil entender o poder que as pessoas pobres do Brasil têm", disse Peter Vorderstemann, 56, professor de Essen.
Formado em literatura e teologia,
o enfermeiro Michael Otto, 36,
que acompanhou os quatro dias
de espetáculo, foi mais longe:
"Não preciso mais ir ao Brasil.
Agora já o conheço. Ele [Zé Celso]
vai além de [Bertolt] Brecht. Se
Brecht estivesse vivo, estaria fazendo esse tipo de teatro".
Em "O Homem 2", a platéia reagiu com aplausos ao chamado
"beija", cena em que o público é
convidado a sentar em roda no
centro da pista e é beijado pelo
elenco. Mas interação maior ainda estava por vir. Nua, com uma
maçã na mão, uma das atrizes escolheu um dos presentes para tirar a roupa e formar a dupla
"Adão e Eva". O Adão agarrado
era o fotógrafo Dominic Rose, 23.
Na hora de tirar a cueca, o alemão
emperrou. "Não sei se fui medroso, mas tenho uma namorada e
ela não gostaria de saber que fiquei pelado numa peça. Além disso, estou um pouco gordo."
As reclamações de poucas pessoas eram semelhantes às críticas
do público brasileiro: "A peça é
longa demais" ou "o banco era
muito duro". A barreira da língua
não foi muito comentada. É verdade que havia a tradução feita
pelo professor Berthold Zilly, exibida em painéis eletrônicos. Mesmo assim, o público parecia mais
interessado na encenação festiva
do que na história.
No final de "O Homem 1", com
aplausos de mais de 20 minutos,
Zé Celso fez um discurso. Nele,
comentou a disputa pelo entorno
do teatro Oficina com Silvio Santos, "uma espécie de Cidadão Kane brasileiro", e apresentou seu
projeto de construção de um teatro-estádio, cercado por uma
"oficina de florestas". "Depois de
25 anos, Silvio finalmente foi conhecer pessoalmente o teatro. Estamos otimistas", disse o diretor,
que pediu para as pessoas enviarem e-mails para o grupo Silvio
Santos e ganhou cem euros de um
espectador para comprar uma árvore para o entorno do teatro.
Nem Glauber Rocha nem Oswald de Andrade, o ensaio de
quase quatro horas de "A Luta"
foi dedicado ao recepcionista do
hotel em que o grupo está hospedado: Bernard Rademacher, 56,
espécie de filósofo que divaga sobre temas como a política de Bush
e medicina alternativa. E não é
que ele é a cara do Silvio Santos?
O jornalista Marcos Dávila viajou a convite do Ruhrfestspiele
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