São Paulo, quarta-feira, 26 de maio de 2004

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TEATRO

Com o grupo Uzyna Uzona, diretor promove "maratona" com quase 20 horas de sua versão da obra de Euclydes da Cunha

Zé Celso instaura o sertão na Alemanha

MARCOS DÁVILA
ENVIADO ESPECIAL A RECKLINGHAUSEN

"O público alemão não pisca", disse o encenador Bob Wilson ao dramaturgo e diretor Heiner Müller, em uma de suas apresentações na Alemanha. Foi com os olhos arregalados que a platéia alemã assistiu à maratona de quatro espetáculos do épico "Os Sertões", ou "Krieg im Sertao" ("Guerra no Sertão"), encenada por Zé Celso e o Uzyna Uzona e que terminou no domingo.
A companhia, que reapresenta as peças no próximo final de semana, é a atração principal do festival de teatro Ruhrfestspiele, em Recklinghausen, uma pequena cidade na região do Ruhr, no oeste da Alemanha. Numa reprodução fiel do teatro Oficina, construída dentro de um galpão de uma mina de carvão desativada, o público acompanhou, incansável, as quatro partes da saga inspirada no romance de Euclydes da Cunha: "A Terra", "O Homem - Parte 1", "O Homem - Parte 2" e um ensaio aberto de "A Luta", que somam quase 20 horas de espetáculo.
Aos primeiros toques da batucada que abre "A Terra", a perplexidade dos olhos atentos da estudante Kama Frankl, 18, de Recklinghausen, deu lugar às lágrimas. "Comecei a chorar. Eles olhavam profundamente, dentro dos meus olhos." O "olho no olho" e o toque desinibido dos atores foi muito comentado pela platéia, que surpreendeu as expectativas ao se misturar com os atores e dançar o "miudinho".
"É muito diferente do teatro alemão, não diz somente ao intelecto. Ficou mais fácil entender o poder que as pessoas pobres do Brasil têm", disse Peter Vorderstemann, 56, professor de Essen. Formado em literatura e teologia, o enfermeiro Michael Otto, 36, que acompanhou os quatro dias de espetáculo, foi mais longe: "Não preciso mais ir ao Brasil. Agora já o conheço. Ele [Zé Celso] vai além de [Bertolt] Brecht. Se Brecht estivesse vivo, estaria fazendo esse tipo de teatro".
Em "O Homem 2", a platéia reagiu com aplausos ao chamado "beija", cena em que o público é convidado a sentar em roda no centro da pista e é beijado pelo elenco. Mas interação maior ainda estava por vir. Nua, com uma maçã na mão, uma das atrizes escolheu um dos presentes para tirar a roupa e formar a dupla "Adão e Eva". O Adão agarrado era o fotógrafo Dominic Rose, 23. Na hora de tirar a cueca, o alemão emperrou. "Não sei se fui medroso, mas tenho uma namorada e ela não gostaria de saber que fiquei pelado numa peça. Além disso, estou um pouco gordo."
As reclamações de poucas pessoas eram semelhantes às críticas do público brasileiro: "A peça é longa demais" ou "o banco era muito duro". A barreira da língua não foi muito comentada. É verdade que havia a tradução feita pelo professor Berthold Zilly, exibida em painéis eletrônicos. Mesmo assim, o público parecia mais interessado na encenação festiva do que na história.
No final de "O Homem 1", com aplausos de mais de 20 minutos, Zé Celso fez um discurso. Nele, comentou a disputa pelo entorno do teatro Oficina com Silvio Santos, "uma espécie de Cidadão Kane brasileiro", e apresentou seu projeto de construção de um teatro-estádio, cercado por uma "oficina de florestas". "Depois de 25 anos, Silvio finalmente foi conhecer pessoalmente o teatro. Estamos otimistas", disse o diretor, que pediu para as pessoas enviarem e-mails para o grupo Silvio Santos e ganhou cem euros de um espectador para comprar uma árvore para o entorno do teatro.
Nem Glauber Rocha nem Oswald de Andrade, o ensaio de quase quatro horas de "A Luta" foi dedicado ao recepcionista do hotel em que o grupo está hospedado: Bernard Rademacher, 56, espécie de filósofo que divaga sobre temas como a política de Bush e medicina alternativa. E não é que ele é a cara do Silvio Santos?


O jornalista Marcos Dávila viajou a convite do Ruhrfestspiele


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