São Paulo, sexta, 26 de junho de 1998

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CINEMA ESTRÉIAS
"A Trégua' melodramatiza discrição de Levi

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

O problema que salta aos olhos num filme como "A Trégua", de Francesco Rosi, é uma questão considerada hoje um pouco anacrônica, por já ter sido em grande parte resolvida -embora, ao que tudo indica, nem tanto: saber se basta a uma obra ser apenas veículo de idéias políticas ou morais (por mais corretas e admiráveis que sejam) ou se lhe cabe algo mais do que isso.
Como plataforma de um posicionamento moral inquestionável para qualquer espectador de bom senso, o filme que estréia hoje tem todos os méritos.
E é provável que boa parte do júri popular que elegeu "A Trégua" como melhor filme da Mostra Internacional de Cinema São Paulo do ano passado tenha votado com a convicção -ingênua, neste caso- de quem assina um manifesto contra o nazismo.
Baseado no livro homônimo de Primo Levi (1919-1987), o filme conta a história autobiográfica do autor, um químico italiano judeu e antifascista, em sua via-crúcis para conseguir voltar para casa, em Turim, depois de ter sido libertado de Auschwitz pelo exército soviético ao final da Segunda Guerra, em 1945.
Mas e para além do bom senso moral, para além daquilo com que todos concordam (que somos contra o nazismo), o que resta a "A Trégua" como filme?
Questão moral
Levi erra com outros sobreviventes, como um miserável faminto, pela Europa Oriental, pela Polônia, pela União Soviética, Romênia, Hungria, Áustria e de volta à Alemanha, antes de conseguir chegar à Itália.
Nesse percurso, se depara com a mesquinharia, a miséria e o anti-semitismo que a trégua não extinguiu -"a guerra é sempre", lhe diz um grego companheiro de viagem-, mas o autor também encontra a amizade, a alegria e o desejo.
O clichê surrado que se costuma ouvir da crítica sobre quase toda adaptação cinematográfica -que o livro é melhor que o filme- cairia como uma luva no caso do longa de Francesco Rosi se não fosse por sua obviedade um tanto constrangedora.
"A Trégua", o livro, é uma das obras mais celebradas do autor de "É Isto um Homem?", um escritor consagrado, e não somente por sua posição moral incontestável.
Primo Levi reinventa o depoimento do Holocausto e o transforma num gênero literário, ao fazer o testemunho simples e direto daquilo que não possui linguagem, do inumano, do que é inexprimível.
Seu relato é a letra do que não pode se expressar ou sobreviver, como o menino, "o que não tinha nome"- aliás, eliminado do filme-, descrito logo nas primeiras páginas do livro e que, nascido dentro do campo, aos três anos não aprendera a falar e nunca vira uma árvore.
"Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras", escreve Levi.
À procura de uma outra representação, essa literatura propõe uma descrição seca -e por isso mesmo tão mais emocionante- do que presenciou e viveu o autor, mas também um jogo de transmutação do horror em prazer da leitura, mesmo que esse seja um "privilégio atroz" dos sobreviventes.
Primo Levi se matou em 1987. Toda a sua obra, dos ensaios às histórias de ficção científica, está marcada pela questão moral, mas não como reafirmação do lugar-comum.
É como se a obra fosse a descrição do mundo pelo avesso, uma outra visão da humanidade a partir da experiência do campo de Auschwitz.
Lugar-comum
Já o filme, preferindo não se arriscar pelo terreno do comedimento, tenta tornar tudo mais reconhecível e emocionante com o uso e o abuso não só da música em momentos-chave, mas dos recursos melodramáticos mais convencionais.
Nem é preciso dizer que, ao tomar o caminho do lugar-comum, acaba ficando muito aquém do efeito pretendido.
A regra deve ser geral, mas em nenhuma outra situação, como na que diz respeito ao Holocausto, a representação corre tanto o risco de se perder no esforço de reproduzir o drama do real, no fundo irrepresentável.
Não há nenhum melodrama no Holocausto, simplesmente porque, com essa experiência, é a própria noção de humanidade que é posta à prova -e não há mais ilusão possível.
É preciso uma outra representação. Daí, quanto mais discreto e seco o relato, maiores as chances e os efeitos do drama.
E essa é a principal lição que os responsáveis pelo longa-metragem parecem não ter aprendido com o autor do livro que adaptaram.

Filme: A Trégua Produção: Itália, 1997 Direção: Francesco Rosi Com: John Turturro, Rade Serbedzija, Massimo Ghini Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco de Cinema - sala 1


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