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CINEMA ESTRÉIAS
"A Trégua' melodramatiza discrição de Levi
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
O problema que salta aos olhos
num filme como "A Trégua", de
Francesco Rosi, é uma questão
considerada hoje um pouco anacrônica, por já ter sido em grande
parte resolvida -embora, ao que
tudo indica, nem tanto: saber se
basta a uma obra ser apenas veículo de idéias políticas ou morais
(por mais corretas e admiráveis
que sejam) ou se lhe cabe algo
mais do que isso.
Como plataforma de um posicionamento moral inquestionável
para qualquer espectador de bom
senso, o filme que estréia hoje tem
todos os méritos.
E é provável que boa parte do júri popular que elegeu "A Trégua"
como melhor filme da Mostra Internacional de Cinema São Paulo
do ano passado tenha votado com
a convicção -ingênua, neste caso- de quem assina um manifesto contra o nazismo.
Baseado no livro homônimo de
Primo Levi (1919-1987), o filme
conta a história autobiográfica do
autor, um químico italiano judeu
e antifascista, em sua via-crúcis
para conseguir voltar para casa,
em Turim, depois de ter sido libertado de Auschwitz pelo exército
soviético ao final da Segunda
Guerra, em 1945.
Mas e para além do bom senso
moral, para além daquilo com que
todos concordam (que somos
contra o nazismo), o que resta a
"A Trégua" como filme?
Questão moral
Levi erra com outros sobreviventes, como um miserável faminto, pela Europa Oriental, pela
Polônia, pela União Soviética, Romênia, Hungria, Áustria e de volta
à Alemanha, antes de conseguir
chegar à Itália.
Nesse percurso, se depara com a
mesquinharia, a miséria e o anti-semitismo que a trégua não extinguiu -"a guerra é sempre",
lhe diz um grego companheiro de
viagem-, mas o autor também
encontra a amizade, a alegria e o
desejo.
O clichê surrado que se costuma
ouvir da crítica sobre quase toda
adaptação cinematográfica -que
o livro é melhor que o filme- cairia como uma luva no caso do longa de Francesco Rosi se não fosse
por sua obviedade um tanto constrangedora.
"A Trégua", o livro, é uma das
obras mais celebradas do autor de
"É Isto um Homem?", um escritor consagrado, e não somente
por sua posição moral incontestável.
Primo Levi reinventa o depoimento do Holocausto e o transforma num gênero literário, ao fazer
o testemunho simples e direto daquilo que não possui linguagem,
do inumano, do que é inexprimível.
Seu relato é a letra do que não
pode se expressar ou sobreviver,
como o menino, "o que não tinha
nome"- aliás, eliminado do filme-, descrito logo nas primeiras
páginas do livro e que, nascido
dentro do campo, aos três anos
não aprendera a falar e nunca vira
uma árvore.
"Nada resta dele: seu testemunho se dá por meio de minhas palavras", escreve Levi.
À procura de uma outra representação, essa literatura propõe
uma descrição seca -e por isso
mesmo tão mais emocionante-
do que presenciou e viveu o autor,
mas também um jogo de transmutação do horror em prazer da leitura, mesmo que esse seja um
"privilégio atroz" dos sobreviventes.
Primo Levi se matou em 1987.
Toda a sua obra, dos ensaios às
histórias de ficção científica, está
marcada pela questão moral, mas
não como reafirmação do lugar-comum.
É como se a obra fosse a descrição do mundo pelo avesso, uma
outra visão da humanidade a partir da experiência do campo de
Auschwitz.
Lugar-comum
Já o filme, preferindo não se arriscar pelo terreno do comedimento, tenta tornar tudo mais reconhecível e emocionante com o
uso e o abuso não só da música em
momentos-chave, mas dos recursos melodramáticos mais convencionais.
Nem é preciso dizer que, ao tomar o caminho do lugar-comum,
acaba ficando muito aquém do
efeito pretendido.
A regra deve ser geral, mas em
nenhuma outra situação, como na
que diz respeito ao Holocausto, a
representação corre tanto o risco
de se perder no esforço de reproduzir o drama do real, no fundo
irrepresentável.
Não há nenhum melodrama no
Holocausto, simplesmente porque, com essa experiência, é a própria noção de humanidade que é
posta à prova -e não há mais ilusão possível.
É preciso uma outra representação. Daí, quanto mais discreto e
seco o relato, maiores as chances e
os efeitos do drama.
E essa é a principal lição que os
responsáveis pelo longa-metragem parecem não ter aprendido
com o autor do livro que adaptaram.
Filme: A Trégua
Produção: Itália, 1997
Direção: Francesco Rosi
Com: John Turturro, Rade Serbedzija,
Massimo Ghini
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco de Cinema - sala 1
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