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FORNADA DO MILÊNIO
Coragem, generosidade e o ego do teatro
GERALD THOMAS
em Nova York
Enrolado no papel de embrulho marrom -o mais ordinário possível-, o ator David
Bryne passa suas tardes vagando pelas ruas de Nova
York. Grisalho, acabado,
Bryne é uma "escultura morta", que perambula pela cidade em sinal de protesto. "Quero
que me reciclem, que me joguem fora", ele berra para
quem quer ouvir.
Mas, em geral, ninguém lhe
dá ouvidos. O povo passa por
ele batido. No papel que o embrulha, ele rabiscou algumas
frases célebres que traduzem
sua agonia. Em seu peito, se lê:
"Quero virar um simples produto de consumo" (de Andy
Warhol). Nas costas, com caneta grossa, está grafitada a
frase que melhor traduz a impotência dos velhos guerreiros
da contracultura: "Não há nada mais constrangedor do que
um velho cantando rock", de
Grace Slick, cantora da
ex-banda radical Jefferson
Airplane.
Bryne é um triste sobrevivente do teatro dos anos 60, um
velho militante do teatro de
Grotowski, que não encontrou
mais espaço para a sua arte
nesta era viciada em frivolidades, em notícias rápidas e ligeiras, e acabou virando chacota nos meios teatrais nova-iorquinos.
Na verdade, pode-se dizer
que Bryne é o único culpado
pelo seu tragicômico destino e
que não teve jogo de cintura
para acompanhar os tempos,
que não teve coragem de abandonar o seu ego. Pode-se dizer
que a loucura de Bryne não é
oriunda da frustração em assistir a esta era de frivolização
e emburrecimento de todas as
artes, mas sim de seu excessivo
narcisismo.
Bryne sente que foi impedido
de continuar. Mas continuar o
quê? Continuar um discurso
que pecou por não saber se renovar?
Eu me pergunto se não é, meramente, uma questão de generosidade. Sim, a generosidade de descer do seu pedestal de
certezas e enfrentar um bravo
diálogo com seus contemporâneos. Bryne está assim porque
não entendeu os eventos radicais que transformaram e inverteram, radicalmente, os valores sociais e culturais que regem a vida prática do teatro.
Que valores são esses? Exatamente os valores opostos àqueles que surgiram quando
Bryne correu para a Polônia,
atrás de seu guru. Nesses 30
anos, o teatro passou da procura brutal por uma identidade a uma insistente forma que
propaga e tenta imprimir na
sociedade -com enorme arrogância- a imagem imaculada
de seu criador.
"Um circo! Um festival podre
de exibicionistas", Bryne monologa, sem ser perguntado.
Mas de quem ele está falando?
Dele mesmo? Será que ele fala
da "performer" Karen Finley,
que agora cobre seu corpo de
chocolate e sobe aos palcos? Ou
será que fala da artista Orlan,
cuja obra-de-arte consiste em
submeter sua cara a diversas
cirurgias plásticas, virando
uma reprodução temporária e
artificial de uma Mona Lisa ou
uma Greta Garbo?
Será que Bryne reclama dos
artistas que só conseguem se
"transformar em arte", a ponto
de se mutilarem para tanto?
Será que Bryne reclama do
grupo mineiro Dança Burra ou
dos sobreviventes do La Fura
dels Baus, que levam às últimas consequências (não sem
ironia) a absoluta crítica à
gestalt moderna?
Pode ser que não. Pode ser
que Bryne desconheça todos
eles e esteja reclamando, na
verdade, daqueles artistas que
viraram repetições insistentes
de uma fórmula que deu certo
e que foi, devidamente, absorvida pela sociedade como um
produto de consumo de vanguarda. A deformação e a
fragmentação existem no vernáculo do artista há muito
tempo, talvez de forma mais
evidente e protestante, desde
que Duchamp pintou um bigode na "Mona Lisa".
Este ano de 98 está preenchido por constantes e necessários
(...e exaustivos!) seminários e
debates a respeito dos rumos
múltiplos, desorganizados e
egocêntricos do teatro dos últimos 30 anos. Descrito por vários experts como um "vício
impossível de ser curado", o
teatro continua a atrair multidões no mundo inteiro.
Centenas de festivais pipocam nos cinco continentes, páginas e mais páginas de jornais
são devotadas a criaturas que
atacam ou defendem essa arte.
Mas, quando examinado microscopicamente, mesmo até
por pessoas que o praticam,
poucos sabem dizer por que ele
chegou a esse ponto de esterilidade, previsibilidade e falta de
generosidade.
Generosidade. Se virmos o
teatro como uma arte cujo epicentro reside no ego daquele
que o pratica, deve-se esperar
dele somente que esse ego abocanhe tudo aquilo que estiver
em seu caminho e que ele devolva essa matéria digerida,
devidamente revestida, decorada do seu jeito, com sua assinatura codificada e pessoal,
sua "fórmula" já aprovada pelas platéias internacionais. Pode ser esse o excesso de ego do
qual Bryne reclama.
Mas, se virmos o teatro como
uma arte em si, que cria casamentos temporários com aqueles que criam por meio dele,
encontraremos poucos artistas
verdadeiramente empenhados
em desvendar seus códigos
enigmáticos, sua dialética difícil de acompanhar. Um desses
poucos é Antunes Filho, encenador-mestre e artista genial
que, inquieto e enojado com a
fórmula previsível da representação teatral, tem a coragem e a generosidade de abandonar qualquer trilha que o
paralise e enclausure num só
monólogo sua genial concepção para o teatro.
Poucos no mundo do teatro,
muito poucos, mantêm sua
criatividade dentro de uma
perspectiva tão verdadeiramente experimental e revolucionária quanto Antunes.
Talvez por causa de uma demanda "industrial", ou uma
necessidade patética de "abafar", agradar e se provar rentável, quase toda uma geração
pós-68 parou no tempo -justamente essa concepção concreta de tempo, que tanto ajudou o modernismo a perseguir
o novo e descartar o velho. Parada e iludida por um falso
brilho de juventude que seu espelho lhe dá, grande parte da
geração pós-68 faz com que
qualquer obra-de-arte venha
até ela, se curve ao seu uso e
abuso oportunista e, travestida
de truques, luzes e discursos
pessoais, só consegue mesmo
matar a experiência do novo,
de um teatro realmente novo.
Se me incluo nessa leva? É evidente que sim.
Estamos mesmo fadados a
virar uma versão industrializada e despersonalizada dos
nossos sonhos. Não é à toa que
David Bryne escolheu o papel
de embrulho mais barato que
pôde encontrar. Nossa generosidade em absorver, ou mesmo
em tentar entender, novas formas de expressão se transformou em pequenos e ríspidos
comentários irônicos, ácidos, a
respeito daqueles que habitam
esse pequeno microcosmo.
Nessa época de efervescente
discussão sobre a sobrevivência desse "vício", só posso me
lembrar com alegria e emoção
de uma frase que Julian Beck,
o mago do Living Theater, me
cochichava no ouvido antes de
sua entrada em cena, em
Frankfurt. Julian era o protagonista da minha "Trilogia
Beckett", em que fazia, pela
primeira vez em sua explosiva
carreira teatral, o mero papel
de ator.
"Eles nunca me perdoarão
por isso", dizia ele sobre os
ex-radicais barbados que enchiam nossa platéia. "Mas
quem sabe se, no final da peça,
eu não ergo o meu punho, só
para lhes dar aquele gostinho
que tanto esperam de mim?"
Julian riu e, um segundo antes
de entrar em cena, cochichou
de novo: "Espero que tenham a
generosidade de entender o
que essa experiência significa
no final da minha vida". Para
nosso próprio espanto, a platéia devolveu a generosidade
de Julian. E a arte de representar Beckett nunca foi a mesma.
Ah, que saudade do Antunes.
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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