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São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 2003

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FERNANDO BONASSI

O incrível menino preso na fotografia

Eu sou o menino da fotografia. O incrível menino preso na fotografia. Sentei-me nesta cadeira envernizada no dia 2 de agosto de 1973, às oito horas e 50 minutos da manhã, conforme me foi ordenado.
Vocês não podem ver a cadeira, mas ela está... ou esteve... aí. Fomos, eu e meus colegas, convocados a uma cerimônia cívica, antes de mais nada. Cantamos hinos e nos prestamos às homenagens. No tempo desta fotografia havia muitas cerimônias cívicas e convocações e homenagens onde cantávamos hinos...
A bandeira à minha direita pinica meu braço. Com o vento, esta bandeira à minha esquerda também se agita e me atinge o cotovelo às cócegas. Dizem... disseram que eu ficasse aqui. Imóvel. Aceitei. No começo porque estava ansioso pra que o tempo chegasse. Em seguida porque demorava que o tempo passasse. Depois porque estava cansado que corresse depressa...
Disseram que eu ficasse aqui. Imóvel. Cumpro as minhas obrigações. Essa posição me pareceu progressivamente confortável. Não devo... não posso... me mexer. De todo modo, no tempo desta fotografia, "se mexer" não é recomendável...
Olho adiante, onde há... havia... a velha câmera-caixão equilibrada num tripé trêmulo. As velhas câmeras-caixão caíram em desgraça, junto com as convocações e os hinos... mas isso foi depois. No instante desta fotografia onde estou isolado, o fotógrafo me manda... mandava... ficar imóvel. A professora me diz... dizia... pra cruzar os braços sobre essas folhas de papel. Obedeci. Obedeço. Desde sempre. A ambos. No tempo desta fotografia, convém obedecer. Depois... a tudo se acostuma.
É possível que houvesse alguma inscrição nestas folhas de papel. É possível que a inscrição tenha sido escolhida cuidadosamente pela professora ou até mesmo pelo fotógrafo, mas a passagem do tempo, agora, deve tê-la desgastado. Parecem folhas em branco outra vez. Não posso afirmar com certeza, pois não posso baixar os olhos. Estou cumprindo minhas ordens, mas a passagem do tempo apaga tudo, como vocês devem saber...
Não quanto a mim, de todo modo, que olho adiante desde sempre, ainda que este mapa às minhas costas tenha perdido os sentidos da história. Mundos inteiros se desagregaram e ele nem ali pra retificações. Neste outro mapa que forra a mesa (e eu podia jurar que há... havia... uma mesa aqui embaixo), ainda há rios monumentais, florestas monumentais, estradas monumentais, pontes monumentais... no tempo desta fotografia tudo era... é... monumental; principalmente o medo.
Há... letras e números. Nunca houve nomes. Provavelmente porque não beneficiava a ninguém ser alguém muito específico na época desta fotografia... daí as letras e os números. Não deixa de ser um alívio, supondo que fizesse diferença. Estou no quarto ano. Isso é evidente. Era assim que chamavam nessa época, mas os nomes das mesmas coisas mudaram muitas vezes. Há este "A" e este 12 incompreensíveis... Porque era o 12º da lista de chamada da classe A? Porque éramos 12 classes de pessoas e eu pertenceria à primeira delas? Porque éramos uma dúzia de classes especiais? Qual é o ponto deste ponto que se cola ao número? Minha memória me trai. Aliás, já me esqueci da diferença de não estar. Muitos muros caíram, muitos foram levantados. Vi pessoas importantes tornarem-se criminosos e criminosos tornarem-se pessoas importantes...
O fotógrafo manda... mandou... que eu permanecesse imóvel e que sorrisse, e frequentemente me ocorre que pode ter sido por causa disso; por causa dessa minha dificuldade com esses sorrisos com que nos afetamos... Esses sorrisos que podem se despregar de nossas caras e se espatifar no chão. Quem sabe por receio daquela... dessa... queda ridícula... pode ser... me ative a esta paralisia...
Eles insistem... O fotógrafo e minha professora insistiram, mas é... era impossível. Meus dentes estão definitivamente cerrados por baixo das carnes do rosto; meus maxilares estão muito bem prensados um no outro.
Olho sempre em frente, quase cabisbaixo, como sugeriam as ordens e aqueles que acenam com promessas. Acenava-se com promessas maravilhosas no momento dessa fotografia, diante das quais nos mantemos quase cabisbaixos. Acabei resolvendo esperar por elas... por todas essas promessas... aqui... agora... então...
Daqui posso ver que tudo se move, ainda que alguns cães insistam em morder o próprio rabo. Já minha própria aparência não me diz respeito se meus olhos não a vêem. Meu coração não sente bem. Nem mal. As coisas que eu devia ter feito e as coisas que eu deixei de fazer empatam em zero a zero. Não chega a ser um grande resultado. Nem é o pior deles. Não desperdiço. Não gasto. Não faço... a última árvore que se abateu por minha causa me deu essa moldura de papel descolorido.
Me tornei essa paisagem humana. Uma imagem de homem. Não sei o que foi feito dos meus colegas, mas permaneci. O impasse é a melhor síntese do meu movimento. Daqui posso ver tudo. Eu estou de olho em vocês... e adiante... não posso fazer nada.


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