|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Tudo já foi dito e ainda está para se dizer sobre o atentado
Quinze dias depois do
atentado ao World Trade
Center, vou ficando com uma
sensação contraditória: parece
que tudo já foi dito sobre a tragédia e, ao mesmo tempo, é como se
tudo ainda estivesse por dizer.
Comentários sucedem-se e não
é que sejam repetitivos ou óbvios:
sempre estão surgindo novos pontos de vista e novos ângulos de
discussão. De alguma forma, contudo, parecem inúteis ou um tanto marginais.
Nada mais elogiável, por exemplo, do que insistir no fato de que
nem todo muçulmano é fanático
ou terrorista. É ótimo -e o próprio Bush frisou esse ponto- que
se evite o preconceito contra o islamismo. Passadas as reações iniciais ao atentado, chega a surpreender o esforço de moderação
que se nota no discurso de quase
todo mundo. Há, sem dúvida,
muitos "fundamentalistas da civilização ocidental", mas parece
ser majoritário o medo de que a
nossa atitude termine se provando tão radical quanto a dos adeptos do Taleban.
O que me incomoda, entretanto, é que, se o discurso ocidental
tende a ser relativamente cuidadoso, isso talvez se deva ao fato de
que palavras, comentários, argumentos e raciocínios se mostram
singularmente desimportantes no
momento.
Mais do que nunca, é por meio
das imagens, e não das palavras,
que tudo vai sendo decidido. Fico
assustado com o poder de manipulação de que dispõem as redes
de notícias. Claro, isso já se sabia:
a televisão pode, com mais eficácia do que qualquer jornal, fabricar vilões ou mocinhos como bem
entender.
Assistir ao noticiário da CNN,
contudo, tem sido bastante instrutivo. Produz-se ali, 24 horas
por dia, a ideologia em estado puro, em estado "pré-verbal", se podemos dizer assim.
Nem precisa ser "manipulação", se entendermos por isso o
ato consciente de um indivíduo
que escolhe esta ou aquela imagem, que seleciona este ou aquele
depoimento, que censura isto ou
aquilo para melhor enganar o espectador. Com certeza esse gênero
de coisas ocorre o tempo todo,
mas é a outra espécie de manipulação a que me refiro: quase que
automática, quase "inevitável".
Um primeiro exemplo. Pode-se
falar muito bem da religião muçulmana, dos "verdadeiros valores islâmicos" (que devem ser como os nossos, a paz, a fraternidade etc). Mas, no contexto atual, a
simples cena de cem ou 200 pessoas rezando em direção a Meca
já está carregada de significado
negativo. Tento explicar.
O que vemos na TV não é o rosto de uma pessoa rezando, quase
sempre é uma multidão. A câmera nunca mostra a multidão parada. Claro que, pela própria linguagem televisiva, interessa mostrar o movimento: assim o que vemos é uma massa de homens, todos vestidos de branco no exato
instante em que se ajoelham e estendem os braços para o chão. Parece um dominó humano. Ou seja, dá-se a conhecer algo sem rosto, uniforme, sincronizado, mecânico, sinal de extrema disciplina e
de fé cega.
Pouco importa, diante dessa
imagem, se aqueles homens estão
rezando pelas vítimas do World
Trade Center. Uma conotação de
"fanatismo" transmite-se simplesmente porque eles rezam de
um jeito diferente do nosso, e a
câmera acentua essa diferença.
Compare-se uma imagem desse
tipo às que marcaram a transmissão do discurso de Bush ao Congresso norte-americano. Aqueles
aplausos que se seguiam a cada
frase do presidente lembraram-me um pouco as cerimônias do
soviete supremo. Se fossem as
imagens de algum discurso de
Brejnev, certamente balançaríamos a cabeça, vendo naquilo a
confirmação do totalitarismo comunista.
Mas as câmeras de TV agiram
de modo oposto. Vimos, por
exemplo, closes de Bush. Até ele,
cujo olhar não será decerto o de
um moderno Péricles, surgia como estadista ao ser enfocado um
pouco de baixo para cima, destacando-se contra o fundo negro
dos acontecimentos.
Mais do que isto. Com um "timing" preciso, em tudo semelhante ao das premiações do Oscar, a TV mostrava cada uma das
pessoas a quem Bush se referia no
discurso. Já não temos mais uma
massa compacta de seguidores da
fé norte-americana, mas sim os
representantes de uma sociedade
diferenciada e saudável: a viúva,
o chefe dos bombeiros, o prefeito,
o militar, o sacerdote, quem quisermos. Alguns militares, aliás,
eram bem mais lombrosianos do
que Bin Laden, mas não faz mal,
pois é preciso dizer que temos
gente de todos os modelos, conforme as exigências de cada ocasião.
Por falar em Bin Laden, eis outro caso em que se dá uma espécie
de manipulação ideológica automática: como o noticiário da
CNN está no ar 24 horas, as poucas imagens de Bin Laden foram
sendo repetidas à exaustão. De
"principal suspeito" pelo atentado, em poucos dias e de tanto o
mostrarem, Bin Laden já se tornou culpado. Culpadíssimo. Dizer que "não há provas contra
ele" já é praticamente apoiar o
Taleban. Tornou-se inadmissível
não apenas "duvidar" de que tenha sido ele o culpado, mas até
mesmo ignorar que ele é o autor
confesso do que aconteceu.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Cada cena que vemos
na TV, mesmo que teoricamente
neutra, já nos chega tão carregada de sentido que os comentários
mais sóbrios soam como um palavrório supérfluo. O culto às imagens, que, até onde sei, é condenado pelo islamismo, nunca foi tão
intenso entre nós, e a televisão oficia, diariamente, um ritual a que
é difícil oferecer alguma resistência.
Texto Anterior: Artes cênicas: Bonecos do Giramundo vão ao museu Próximo Texto: Ópera: Carmen retorna politicamente correta Índice
|