São Paulo, quarta-feira, 26 de setembro de 2001

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MARCELO COELHO

Tudo já foi dito e ainda está para se dizer sobre o atentado

Quinze dias depois do atentado ao World Trade Center, vou ficando com uma sensação contraditória: parece que tudo já foi dito sobre a tragédia e, ao mesmo tempo, é como se tudo ainda estivesse por dizer.
Comentários sucedem-se e não é que sejam repetitivos ou óbvios: sempre estão surgindo novos pontos de vista e novos ângulos de discussão. De alguma forma, contudo, parecem inúteis ou um tanto marginais.
Nada mais elogiável, por exemplo, do que insistir no fato de que nem todo muçulmano é fanático ou terrorista. É ótimo -e o próprio Bush frisou esse ponto- que se evite o preconceito contra o islamismo. Passadas as reações iniciais ao atentado, chega a surpreender o esforço de moderação que se nota no discurso de quase todo mundo. Há, sem dúvida, muitos "fundamentalistas da civilização ocidental", mas parece ser majoritário o medo de que a nossa atitude termine se provando tão radical quanto a dos adeptos do Taleban.
O que me incomoda, entretanto, é que, se o discurso ocidental tende a ser relativamente cuidadoso, isso talvez se deva ao fato de que palavras, comentários, argumentos e raciocínios se mostram singularmente desimportantes no momento.
Mais do que nunca, é por meio das imagens, e não das palavras, que tudo vai sendo decidido. Fico assustado com o poder de manipulação de que dispõem as redes de notícias. Claro, isso já se sabia: a televisão pode, com mais eficácia do que qualquer jornal, fabricar vilões ou mocinhos como bem entender.
Assistir ao noticiário da CNN, contudo, tem sido bastante instrutivo. Produz-se ali, 24 horas por dia, a ideologia em estado puro, em estado "pré-verbal", se podemos dizer assim.
Nem precisa ser "manipulação", se entendermos por isso o ato consciente de um indivíduo que escolhe esta ou aquela imagem, que seleciona este ou aquele depoimento, que censura isto ou aquilo para melhor enganar o espectador. Com certeza esse gênero de coisas ocorre o tempo todo, mas é a outra espécie de manipulação a que me refiro: quase que automática, quase "inevitável".
Um primeiro exemplo. Pode-se falar muito bem da religião muçulmana, dos "verdadeiros valores islâmicos" (que devem ser como os nossos, a paz, a fraternidade etc). Mas, no contexto atual, a simples cena de cem ou 200 pessoas rezando em direção a Meca já está carregada de significado negativo. Tento explicar.
O que vemos na TV não é o rosto de uma pessoa rezando, quase sempre é uma multidão. A câmera nunca mostra a multidão parada. Claro que, pela própria linguagem televisiva, interessa mostrar o movimento: assim o que vemos é uma massa de homens, todos vestidos de branco no exato instante em que se ajoelham e estendem os braços para o chão. Parece um dominó humano. Ou seja, dá-se a conhecer algo sem rosto, uniforme, sincronizado, mecânico, sinal de extrema disciplina e de fé cega.
Pouco importa, diante dessa imagem, se aqueles homens estão rezando pelas vítimas do World Trade Center. Uma conotação de "fanatismo" transmite-se simplesmente porque eles rezam de um jeito diferente do nosso, e a câmera acentua essa diferença.
Compare-se uma imagem desse tipo às que marcaram a transmissão do discurso de Bush ao Congresso norte-americano. Aqueles aplausos que se seguiam a cada frase do presidente lembraram-me um pouco as cerimônias do soviete supremo. Se fossem as imagens de algum discurso de Brejnev, certamente balançaríamos a cabeça, vendo naquilo a confirmação do totalitarismo comunista.
Mas as câmeras de TV agiram de modo oposto. Vimos, por exemplo, closes de Bush. Até ele, cujo olhar não será decerto o de um moderno Péricles, surgia como estadista ao ser enfocado um pouco de baixo para cima, destacando-se contra o fundo negro dos acontecimentos.
Mais do que isto. Com um "timing" preciso, em tudo semelhante ao das premiações do Oscar, a TV mostrava cada uma das pessoas a quem Bush se referia no discurso. Já não temos mais uma massa compacta de seguidores da fé norte-americana, mas sim os representantes de uma sociedade diferenciada e saudável: a viúva, o chefe dos bombeiros, o prefeito, o militar, o sacerdote, quem quisermos. Alguns militares, aliás, eram bem mais lombrosianos do que Bin Laden, mas não faz mal, pois é preciso dizer que temos gente de todos os modelos, conforme as exigências de cada ocasião.
Por falar em Bin Laden, eis outro caso em que se dá uma espécie de manipulação ideológica automática: como o noticiário da CNN está no ar 24 horas, as poucas imagens de Bin Laden foram sendo repetidas à exaustão. De "principal suspeito" pelo atentado, em poucos dias e de tanto o mostrarem, Bin Laden já se tornou culpado. Culpadíssimo. Dizer que "não há provas contra ele" já é praticamente apoiar o Taleban. Tornou-se inadmissível não apenas "duvidar" de que tenha sido ele o culpado, mas até mesmo ignorar que ele é o autor confesso do que aconteceu.
Os exemplos poderiam ser multiplicados. Cada cena que vemos na TV, mesmo que teoricamente neutra, já nos chega tão carregada de sentido que os comentários mais sóbrios soam como um palavrório supérfluo. O culto às imagens, que, até onde sei, é condenado pelo islamismo, nunca foi tão intenso entre nós, e a televisão oficia, diariamente, um ritual a que é difícil oferecer alguma resistência.



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