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CINEMA/ESTRÉIAS
"SEJA O QUE DEUS QUISER"
Diretor assume risco e despreza dogmas
Murilo Salles radicaliza clichês em comédia cruel
JOSÉ GERALDO COUTO
COLUNISTA DA FOLHA
Cacá (Ludmila Rosa), uma
VJ da MTV, vai fazer uma reportagem de música numa favela
carioca e acaba na cama com o
sambista PQD (Rocco Pitanga, filho de Antonio e irmão de Camila). Atacada por desconhecidos,
ela denuncia o rapaz à polícia, por
suspeitar de sua conivência com
os bandidos.
PQD foge para São Paulo à procura da moça para limpar a própria barra. Por uma série de acasos, acaba ficando à mercê de
Nando (Caio Junqueira), o irmão
clubber de Cacá, que quer usar o
músico para dar um golpe e faturar muita grana.
Desse entrecho Murilo Salles
construiu uma comédia de erros
sobre o choque de classes e culturas no Brasil de hoje, tema já presente, num outro registro, em seu
"Como Nascem os Anjos".
O filme tem causado perplexidade, se não mal-estar, em suas
pré-estréias e exibições especiais.
Não é difícil entender por quê.
"Seja o que Deus Quiser" realiza
uma operação de risco ao desprezar simultaneamente dois elementos que estão se tornando
dogmas no cinema nacional: o
naturalismo e a catarse pacificadora. Vejamos um de cada vez.
Exige-se hoje de um filme brasileiro que mostre "a favela como
ela é", "o Carandiru como ele é",
ou "o sertão como ele é".
Nada contra as obras que buscam essa veracidade documental.
O problema é o retorno à crença
ingênua na arte como reprodução
fiel do mundo existente, que faz
lembrar o caso de alguém que,
diante de uma pintura de Matisse,
exclamou: "Mas essa mulher tem
a barriga verde!" Ao que o pintor
respondeu: "Isso não é uma mulher, meu senhor. É um quadro".
Pois bem. Já em suas primeiras
imagens, tomadas por uma câmera acoplada ao lado de um carro
que entra na favela, fazendo os
transeuntes se desviarem e olharem para esse objeto invasor, o filme se apresenta como uma intervenção na realidade, e não uma
tentativa de retrato servil.
O que se verá a seguir, dizem as
imagens, será uma construção cinematográfica, que tem aspectos
do real -o morro do Alemão, o
prédio da MTV, a rua Augusta,
automóveis, computadores e gente de todas as tribos- como elementos de composição.
E a composição que Salles escolheu fazer é uma comédia cruel,
uma fábula sem moral sobre as
fraturas sociais e culturais brasileiras, conduzida por uma narrativa cartunesca, no limite do verossímil, com personagens unidimensionais, à beira da caricatura.
Mais que na injustiça social e na
opressão de classes, "Seja o que
Deus Quiser" coloca seu foco nos
descompassos culturais e de linguagem, nos deslocamentos de
sentido que ocorrem quando algo
ou alguém de um meio social ingressa em outra esfera -um pouco como acontecia em "O Invasor", de Beto Brant.
A diferença é que Murilo Salles
radicaliza o embaralhamento de
clichês. Ao sair da favela e adentrar o universo da "nite" paulistana, o pacato e afável PQD (já em si
um clichê do sambista gente boa)
se transforma à revelia no "negão
do comando vermelho".
Uma operação oportunista de
marketing em torno da vitimização de PQD é apresentada na TV
como "campanha política de solidariedade". O filme transborda
sarcasmo e ironia.
Numa cena surpreendente e
controvertida, uma senhora aparentemente indefesa (Nicette
Bruno, excelente) saca um 38 e
mete bala no jovem que supostamente tentava roubar seu carro.
Noutra, uma perua que torra seu
dinheiro no bingo (Marília Pêra,
impagável) regateia com sequestradores o resgate do filho.
Passemos ao segundo dogma
ignorado por "Seja o que Deus
Quiser" -e, de resto, também
por "O Invasor"-, o da catarse.
A maioria dos novos filmes brasileiros centrados em problemas
sociais acaba por anestesiar as
platéias por uma dessas duas vias
(se não por ambas): as lágrimas
piedosas ou o banho de sangue.
Seja pela violência espetacular,
seja pela purgação sentimental da
culpa, são filmes dos quais o espectador sai "de alma lavada". De
"Seja o que Deus Quiser", ela sai
tão suja quanto entrou.
Seja o que Deus Quiser
Produção: Brasil, 2002
Direção: Murilo Salles
Com: Rocco Pitanga, Caio Junqueira,
Marília Pêra, Ludmila Rosa
Quando: a partir de hoje nos cines
Jardim Sul, Lumière e circuito
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