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MEMÓRIAS DE RACHEL
"Tenho antipatia mortal por "O Quinze'"
da enviada a Quixadá
Leia abaixo trechos da entrevista
que Rachel de Queiroz e sua irmã
Maria Luíza deram à Folha em sua
fazenda, em Quixadá (CE).
(CYNARA MENEZES)
Folha - Como foi a feitura das
memórias?
Maria Luíza de Queiroz - Eu sou a
única responsável.
Rachel de Queiroz - Tomara que
metam o pau.
Maria Luíza - Foi um trabalho
muito penoso. Enfrentei uma resistência e só porque sou muito teimosa...
Rachel - Manda em mim...
Maria Luíza - Ela usava todo tipo
de truque para não escrever, uma
porção de malcriação. E eu achava
que era uma obrigação minha porque a vida da Rachel foi mais ou
menos paralela à vida política do
Brasil. Ela acompanhou todos os
movimentos e participou deles.
Minha irmã esteve sempre envolvida na história.
Rachel - Não magnifiquemos.
Folha - Vocês sempre se provocaram assim?
Rachel - Não, isso aqui é só para
uso das visitas. Mas ela extraiu esse
livro de mim a fórceps. Não fiquem
esperando muito, que não é lá essas coisas.
Folha - Você foi, é uma pessoa feliz?
Rachel - Feliz, propriamente,
não. Tenho uma natureza conformada com as circunstâncias.
Folha - Então por que, nas fotos,
está sempre sorrindo?
Rachel - Porque fico muito feia
quando estou séria. Tenho duas
rugas grandes ao redor da boca.
Folha - A mulher é uma flor que
não aceita murchar?
Rachel - Pode não aceitar, mas a
vida é implacável. O melhor é aceitar graciosamente. O (Ivo) Pitanguy diz sempre: "Você é a única
mulher que tem Pitanguy de graça
e não usa". Outro dia, alguém me
perguntou na frente dele por que
eu não fazia plástica. Eu disse: "Minha filha, o Pitanguy estica, mas
não renova. Você puxa aqui, ali,
mas a velhice tem a sua harmonia,
o queixo fica mais pesado, os olhos
ficam mais fundos, e a cirurgia interrompe esse processo".
Folha - Tem medo de morrer?
Rachel - Não, para mim a morte é
a libertação. O que seria de nós se
não fosse a morte? É a grande irmã,
a grande amiga.
Folha - Sendo atéia é mais fácil?
Rachel - É muito ruim isso, não
ter uma crença, porque nas fases
ruins você não tem em que se apegar. Tem que se encolher em si
mesma e aguentar a pancadaria.
Invejo profundamente quem tem
uma boa fé. O Helder (d. Helder
Câmara) ainda tem esperança de
me converter, diz que quer morrer
um dia depois de mim só para rezar a extrema-unção junto comigo.
Folha - Como foi seu apoio aos
militares em 64?
Rachel - Aceitamos o golpe militar para derrubar o Jango (João
Goulart). Quando degenerou em
ditadura, nos afastamos. Não tivemos cargos. Conhecia eles todos
por chamar de "você", mas nunca
me aproveitei. Olhando desapaixonadamente, a ação dos generais
não foi tão ruim quanto dizem
nem tão boa quanto os generais
pretendem. Foi um governo de
ocasião, mas que tentou conciliar
e, assim que foi possível abandonar, abandonaram e entregaram
para os civis.
Folha - O que houve de bom?
Rachel - Principalmente ter derrubado o governo de Jango, que foi
uma limpeza. Sempre tive o maior
desprezo pelo Jango intelectualmente, como pessoa, além do desconforto de ver na Presidência o
grupo getulista, que já era por si
fascista. Patrulharam-me muito
porque aprovei o golpe e até hoje
aprovo. Com o Jango, o Brasil teria
emborcado. Era um idiota manobrado por aquela gente.
Folha - Você acha que o que um
escritor pensa politicamente influi
sobre o que escreve?
Rachel - Nunca envolvi o que escrevo literariamente -artigo de
jornal é outra coisa, porque é para
isso mesmo- com ideologia nenhuma. Você pode apresentar o fato político num romance, o que você não pode é fazer pregação política. Romance não é para isso.
Folha - Como você avalia sua
obra?
Rachel - Nunca releio um livro
meu. Tenho um pouco de vergonha de todos os meus livros, de "O
Quinze" tenho uma antipatia mortal, esse livro me persegue há 60
anos. Detesto eles todos.
Folha - Nas suas memórias, há
uma predileção por livros policiais,
considerados subliteratura...
Rachel - Eu adoro literatura policial. Não existe literatura e subliteratura, depende do autor.
Folha - Nunca quis se aventurar
pelo policial?
Rachel - Eu que fui "comuna" e
muito reprimida por policial jamais iria criar um policial fabuloso. Não há uma tradição no Brasil
de polícia intelectual. Alguns policiais do Sul tentam fazer o gênero
Sherlock, mas o que a gente tem é o
policial que prende e bate.
Folha - Você foi comunista, trotskista...
Rachel - Pertenci ao Partido Comunista durante 24 horas. Era
simpatizante, fui admitida, mas no
dia seguinte tive uma grande briga
e abandonei o partido. Ideologicamente continuo trotskista, o camarada Trotski ainda é uma personalidade muito importante para
mim. Era um grande escritor.
Folha - Que autores mais lhe influenciaram?
Rachel - Difícil dizer, porque minha mãe era uma intelectual muito
lida, foi formando meu gosto de
pequena. Ia me dando o Eça, o menos pesado do Eça -sem dizer isso, porque aí eu ficava curiosa pelo
mais pesado. Gosto muito dos autores ingleses, mas fui criada nos
franceses, nos portugueses. Dos
brasileiros, Machado, que é meu
ídolo, meu deus literário.
Folha - Lê filosofia, também?
Rachel - Só gosto de ficção. Li filosofia quando marxista porque
era obrigada. Filosofia é chato que
é danado.
Folha - Sua irmã diz que você
censurou muitas partes do livro
que contavam de sua própria vida
íntima. Por quê?
Rachel - Porque minha vida pessoal é minha, não do público. Essas
coisas a gente fala em romance.
Nas biografias não se deve contar.
Folha - Uma pessoa que não gosta de falar de coisas íntimas se espanta com o mundo de hoje?
Rachel - Fazer parte da vida pública tem esse calvário. O pobre do
Clinton, coitado, por aquele namorinho dele fizeram aquela onda,
quando todo presidente aí tem casa montada com amante, filho e tudo. Getúlio tinha amantes sucessivas, todo presidente tem, né?
Folha - Como foi sua história de
amor com Oyama de Macedo?
Rachel - Foi esse negócio de paixão à primeira vista, fomos viver
juntos, ele era desquitado e eu também. Não havia divórcio. Toda vez
que no Congresso não passava a lei
do divórcio, a mãe dele tinha uma
enxaqueca. Quando chegou, acho
que um dos primeiros casamentos
do Brasil foi o nosso. Oyama deu
esse presente para a mãe. Ele foi
meu único grande amor.
Folha - Como é sobreviver a praticamente todos os seus amigos?
Rachel - Tem sido uma das grandes mágoas da minha vida. Meus
amigos eram todos mais velhos
que eu, de forma que fui perdendo
todos eles, de um em um. (Pedro)
Nava, Graciliano (Ramos), Zé Lins
(do Rego), amigos queridos que
eram como irmãos, a gente se via
todo dia. O Zé Lins acordava a gente de noite porque tinha escrito
uma página e estava em dúvida e
acordava a gente para ouvir o diabo da página.
Folha - Do seu grupo de Alagoas,
quem era seu favorito?
Rachel - Graciliano. Era um homem muito inteligente, fiel às amizades. Acompanhei-o até morrer.
Tinha um gênio ruim. Quando implicava com alguém dizia umas
coisas ferinas. E cultivava o mau
humor como uma característica.
Folha - No livro, a senhora diz
que Mário de Andrade teria sido
mais feliz se tivesse assumido sua
homossexualidade. Por quê?
Rachel - Creio que ele era um homem profundamente infeliz. Acho
que sou a primeira pessoa que faz
alusão escrita a isso, mas era um fato notório entre todos nós. A gente
sentia isso nele, era visível.
Folha - E Manuel Bandeira, era
um solteirão convicto?
Rachel - Manuel era um amor, as
moças adoravam. Agarravam Manuel, beijavam. E ele adorava ser
adorado. Um dia, estava nos mostrando o novo apartamento dele.
Tinha uma cama grande, eu fiz
uma brincadeira. E ele disse:
"Nunca uma mulher dormiu a noite inteira na minha cama". Alguém
perguntou a razão, e ele disse: "Tuberculose". Não sei se era complexo ou cautela, porque até então tuberculose era uma doença incurável. Mas tinha namoradas, amantes, inspirava paixões.
Folha - Por que você não se refere à homossexualidade de seu primo Pedro Nava?
Rachel - Porque foi muito recente
sua morte, porque éramos ligadíssimos e porque ele se matou para
esconder isso. Então, todos nós
respeitamos. Ele se matou para
não ser desmascarado por um sujeito que estava fazendo chantagem.
Folha - A maioria de seus amigos
era homem, não?
Rachel - Minha roda sempre foi
mais masculina, mas não por escolha. Dizem que mulher tem mais
tendência à rivalidade, mas talvez
sejam os homens que espalhem isso.
Folha - Clarice Lispector era sua
amiga?
Rachel - Gostava muito dela e ela
gostava muito de mim. Era uma
pessoa estranha, muito fechada,
cheia de fragilidades. Você magoava a Clarice sem saber, era uma
pessoa extremamente difícil. Como escritora, era a maior de todas
nós.
Folha - E qual seria sua posição?
Rachel - Acho que a última.
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