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NINA HORTA
Um doughnut político
Será a torta na caraum ato político? O que você jogaria no seu inimigo mais mortal?
OUTRO DIA desanimei. O quê?
Página de gastronomia falando do Elvis? Só porque era
gordo?
Nessas horas meu coração fica
miúdo, onde é que estou com a cabeça, deformação profissional, achar
que tudo passa pela comida, comida
e amor, comida e felicidade, comida
e drama, deixa de ser louca, mulher!
Mas, no outro ouvido, um Shakespeare comilão sussurra: há mais coisas no céu e na terra do que sonha
sua filosofia...
Desgostosa, falei durante semanas em vacas, porcos e galinhas, todos muito naturais e orgânicos, e
senti que meus leitores, mais afeitos
a um besteirol, estavam se cansando. Foi aí que achei uma história do
cotidiano numa "New Yorker" velha
que me fez rir. Um casinho de
doughnut. (O doughnut americano
corresponderia ao nosso pastel de
feira. Amado por todos, simplório,
não sujeito a firulas.)
Pois o prefeito Michael Bloomberg, de Nova York, no Dia do Trabalho, enquanto discursava, inaugurando um projeto de melhorias num
condomínio popular no Brooklyn,
ficou bem de frente para um alto
edifício. E, ainda por cima, neste dia,
instalava câmeras de segurança de
alta tecnologia. Foi daí que arremessaram nele um doughnut, glaçado
de chocolate, já mordido.
Foi um bafafá. Veio das alturas, sabe-se lá, nesses tempos de hoje... A
namorada do prefeito deu no pé,
muito alerta, pois os políticos recebem projéteis perigosos, como um
peru de dez quilos do alto de uma
ponte, ovos no Covas (lembram-se?), no Serra, torta de creme no Bill
Gates, galinha viva na Marta Suplicy.
O prefeito, todo janota, de suéter
cor-de-rosa e meia combinando,
não perdeu o rebolado e comentou
que era este o motivo pelo qual era
necessário instalar câmeras de segurança, sempre atentas.
Não há limites para as metáforas
sobre os mísseis alimentícios. O formato do doughnut é um zero -e nos
Estados Unidos um discurso-doughnut (como os do presidente
Bush) significam "um exterior açucarado e glaçado e, no miolo, um buraco sem fundo". E dizem as más línguas que esses projetos de transformar bairros pobres em ricos são um
poço de promessas furadas.
Na semana seguinte, os repórteres
da "New Yorker" foram ver como
andava o projeto. Encontraram um
grupo de mulheres sentadas em
bancos, bem em frente ao prédio assassino, de onde, comentaram elas,
estão sempre voando coisas nas cabeças dos palestrantes da praça. Latas de cerveja, garrafas, fraldas, ovos,
baterias velhas, camisinhas e balões
de gás sem gás, mas cheios de água.
Um perigo. Mas, enquanto se maravilhavam com as melhorias cosméticas efetuadas num piscar de
olhos com a visita do prefeito, o consenso geral das mulheres é que não
havia nada de cunho político no ato.
Se fosse um rato... daria o que pensar.
Uma senhora que se intitulava
chef não estava nada contente com o
upgrade do bairro, principalmente
com os restaurantes novos da avenida principal com suas comidas frias
e cruas, quiçá orgânicas. Tudo ruim,
segundo ela.
Arrematou contando que fazia
doughnuts também, mas que não os
jogava em prefeitos, com o preço absurdo dos ingredientes. "E, além disso, se eu lançasse meus biscoitinhos
de amendoim pela janela ninguém
iria fugir deles, iriam é agarrá-los para comer."
Enfim, será a torta na cara um ato
político? O que você jogaria no seu
inimigo mais mortal? Alguma coisa
com catchup, vermelho-sangue,
com certeza. E só para se manifestar, ovos, que são brancos e se quebram ao contato com a vítima. Já a
torta com creme chama o cara atingido de palhaço, palhaço e sem graça. Aqui, do meu nicho de cozinheira, posso afirmar, decididamente,
que o doughnut também é político,
apesar das afirmações em contrário.
ninahorta@uol.com.br
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