São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2006

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NINA HORTA

Um doughnut político

Será a torta na caraum ato político? O que você jogaria no seu inimigo mais mortal?

OUTRO DIA desanimei. O quê? Página de gastronomia falando do Elvis? Só porque era gordo?
Nessas horas meu coração fica miúdo, onde é que estou com a cabeça, deformação profissional, achar que tudo passa pela comida, comida e amor, comida e felicidade, comida e drama, deixa de ser louca, mulher!
Mas, no outro ouvido, um Shakespeare comilão sussurra: há mais coisas no céu e na terra do que sonha sua filosofia...
Desgostosa, falei durante semanas em vacas, porcos e galinhas, todos muito naturais e orgânicos, e senti que meus leitores, mais afeitos a um besteirol, estavam se cansando. Foi aí que achei uma história do cotidiano numa "New Yorker" velha que me fez rir. Um casinho de doughnut. (O doughnut americano corresponderia ao nosso pastel de feira. Amado por todos, simplório, não sujeito a firulas.) Pois o prefeito Michael Bloomberg, de Nova York, no Dia do Trabalho, enquanto discursava, inaugurando um projeto de melhorias num condomínio popular no Brooklyn, ficou bem de frente para um alto edifício. E, ainda por cima, neste dia, instalava câmeras de segurança de alta tecnologia. Foi daí que arremessaram nele um doughnut, glaçado de chocolate, já mordido.
Foi um bafafá. Veio das alturas, sabe-se lá, nesses tempos de hoje... A namorada do prefeito deu no pé, muito alerta, pois os políticos recebem projéteis perigosos, como um peru de dez quilos do alto de uma ponte, ovos no Covas (lembram-se?), no Serra, torta de creme no Bill Gates, galinha viva na Marta Suplicy.
O prefeito, todo janota, de suéter cor-de-rosa e meia combinando, não perdeu o rebolado e comentou que era este o motivo pelo qual era necessário instalar câmeras de segurança, sempre atentas.
Não há limites para as metáforas sobre os mísseis alimentícios. O formato do doughnut é um zero -e nos Estados Unidos um discurso-doughnut (como os do presidente Bush) significam "um exterior açucarado e glaçado e, no miolo, um buraco sem fundo". E dizem as más línguas que esses projetos de transformar bairros pobres em ricos são um poço de promessas furadas.
Na semana seguinte, os repórteres da "New Yorker" foram ver como andava o projeto. Encontraram um grupo de mulheres sentadas em bancos, bem em frente ao prédio assassino, de onde, comentaram elas, estão sempre voando coisas nas cabeças dos palestrantes da praça. Latas de cerveja, garrafas, fraldas, ovos, baterias velhas, camisinhas e balões de gás sem gás, mas cheios de água.
Um perigo. Mas, enquanto se maravilhavam com as melhorias cosméticas efetuadas num piscar de olhos com a visita do prefeito, o consenso geral das mulheres é que não havia nada de cunho político no ato. Se fosse um rato... daria o que pensar.
Uma senhora que se intitulava chef não estava nada contente com o upgrade do bairro, principalmente com os restaurantes novos da avenida principal com suas comidas frias e cruas, quiçá orgânicas. Tudo ruim, segundo ela.
Arrematou contando que fazia doughnuts também, mas que não os jogava em prefeitos, com o preço absurdo dos ingredientes. "E, além disso, se eu lançasse meus biscoitinhos de amendoim pela janela ninguém iria fugir deles, iriam é agarrá-los para comer."
Enfim, será a torta na cara um ato político? O que você jogaria no seu inimigo mais mortal? Alguma coisa com catchup, vermelho-sangue, com certeza. E só para se manifestar, ovos, que são brancos e se quebram ao contato com a vítima. Já a torta com creme chama o cara atingido de palhaço, palhaço e sem graça. Aqui, do meu nicho de cozinheira, posso afirmar, decididamente, que o doughnut também é político, apesar das afirmações em contrário.


ninahorta@uol.com.br

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