São Paulo, quinta-feira, 26 de outubro de 2006

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Comida

Não é o que parece

Enquanto na França os bistrôs são simples, familiares, baratos e com uma cozinha trivial, em São Paulo eles já nasceram chiques e caros

JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA

Você já pode ter falado, ou ouvido, frases do tipo: "abriu um bistrozinho simpático aqui perto". Ou: "conheço um bistrozinho"... Mas a que tipo de restaurante essa frase se refere precisamente? Serão os bistrôs paulistanos realmente aparentados aos seus irmãos franceses? Sim e não.
São Paulo tem a glória de ter bons restaurantes franceses com ares de bistrô, com aparência e cardápio que remetem aos seus semelhantes de Paris. A diferença é que na França esses restaurantes, na origem, eram lugares simples, familiares, com uma cozinha trivial (à moda francesa, é claro). E hoje em dia continua sendo assim, embora o tempo tenha trazido outras modalidades, bistrôs modernos, bistrôs chiques, bistrôs caros... sem, por isso, terem exterminado, ao menos por ora, aquela instituição tão francesa, o bistrô de bairro, barato, feito para atender a vizinhança, com uma oferta de vinhos limitada (ou vinhos da região do proprietário, ou poucos de vários cantos da França).
A delícia dos paulistanos é poder encontrar aqui um pouco desta comida, destes vinhos e até desta atmosfera, em alguns casos. Mas a diferença está em que o bistrô paulistano nasceu chique. E caro. E assim ficou. Não por uma obra premeditada dos seus donos, mas simplesmente porque a cozinha francesa tende a ser mais cara mesmo, dados seus ingredientes e por requerer mais técnica.
Nos anos 50 do século 20 São Paulo já tinha seus bistrôs bastante autênticos, alguns deles na ativa até hoje. Todos, na época, dirigidos por franceses da gema. O La Casserole, fundado pelo casal Fortunée e Roger Henri. O Marcel, comandado por Jean Durand. O Freddy, tendo à frente Roger Muller. O La Paillote, da família Valluis. Mas nenhum deles era o "bistrozinho do bairro", ou "da esquina". Os ovos e camarões dos suflês do Marcel, a perna de cordeiro do La Casserole, o creme de leite dos molhos do Freddy, os graúdos camarões do La Paillote já eram mais caros do que os ingredientes triviais utilizados então, em outros restaurantes, na cozinha mezzo-italiana mezzo-paulistana, ou na cozinha de origem portuguesa.
Agregue-se ainda o fato de que a cozinha italiana, menos dispendiosa, já era assimilada como uma cozinha local, enquanto a francesa, ulalá, era rara e chique -já se pagava mais pelo que ela simbolizava como status gastronômico e social.
Hoje a situação não mudou muito. Muitos novos restaurantes franceses continuam abrindo e reivindicando o título charmoso de bistrô. Mas não são triviais nem baratos, embora mais baratos do que os restaurantes de alta cozinha. É o caso do Le Vin e do L'Ami (do grupo que teve o Café Antique, refinado e caro, e que terminou fechando, enquanto as crias menores prosperam), do Allez, Allez! (réplica física das casas parisienses mais simples, na Vila Madalena), do Chef Rouge... Ou de outros mais baratos, embora de cozinha mais modesta, como o La Tartine ou o Ça-Va. São todos bem-vindos, alguns deliciosos em seus pratos da velha e boa cozinha burguesa francesa (coq au vin, cassoulet, boeuf bourguignon, steak tartar, blanquette de vitelo, dobradinha, rins...). E, no entanto, o espírito original do bistrô, da coisa barata e bem elaborada, que não conhecemos naquela época dos anos 50, segue nos fazendo falta. O botequim, herança da tasca portuguesa, poderia ter suprido esse papel, não fosse uma cozinha excessivamente simples: tem a informalidade de bistrô, mas não a sofisticação que a cozinha francesa traz do berço. Ainda poderemos um dia ter restaurantes de bons preços, do bairro, com uma cozinha mais refinada? Certamente que sim. Quem se habilita?


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