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Comida
Não é o que parece
Enquanto na França os bistrôs são simples, familiares, baratos e com uma cozinha trivial, em São Paulo eles já nasceram chiques e caros
JOSIMAR MELO
CRÍTICO DA FOLHA
Você já pode ter falado, ou
ouvido, frases do tipo: "abriu
um bistrozinho simpático aqui
perto". Ou: "conheço um bistrozinho"... Mas a que tipo de
restaurante essa frase se refere
precisamente? Serão os bistrôs
paulistanos realmente aparentados aos seus irmãos franceses? Sim e não.
São Paulo tem a glória de ter
bons restaurantes franceses
com ares de bistrô, com aparência e cardápio que remetem aos
seus semelhantes de Paris. A diferença é que na França esses
restaurantes, na origem, eram
lugares simples, familiares,
com uma cozinha trivial (à moda francesa, é claro). E hoje em
dia continua sendo assim, embora o tempo tenha trazido outras modalidades, bistrôs modernos, bistrôs chiques, bistrôs
caros... sem, por isso, terem exterminado, ao menos por ora,
aquela instituição tão francesa,
o bistrô de bairro, barato, feito
para atender a vizinhança, com
uma oferta de vinhos limitada
(ou vinhos da região do proprietário, ou poucos de vários cantos da França).
A delícia dos paulistanos é
poder encontrar aqui um pouco
desta comida, destes vinhos e
até desta atmosfera, em alguns
casos. Mas a diferença está em
que o bistrô paulistano nasceu
chique. E caro. E assim ficou.
Não por uma obra premeditada
dos seus donos, mas simplesmente porque a cozinha francesa tende a ser mais cara mesmo,
dados seus ingredientes e por
requerer mais técnica.
Nos anos 50 do século 20 São
Paulo já tinha seus bistrôs bastante autênticos, alguns deles
na ativa até hoje. Todos, na época, dirigidos por franceses da
gema. O La Casserole, fundado
pelo casal Fortunée e Roger
Henri. O Marcel, comandado
por Jean Durand. O Freddy,
tendo à frente Roger Muller. O
La Paillote, da família Valluis.
Mas nenhum deles era o "bistrozinho do bairro", ou "da esquina". Os ovos e camarões dos
suflês do Marcel, a perna de
cordeiro do La Casserole, o creme de leite dos molhos do
Freddy, os graúdos camarões
do La Paillote já eram mais caros do que os ingredientes triviais utilizados então, em outros restaurantes, na cozinha
mezzo-italiana mezzo-paulistana, ou na cozinha de origem
portuguesa.
Agregue-se ainda o fato de
que a cozinha italiana, menos
dispendiosa, já era assimilada
como uma cozinha local, enquanto a francesa, ulalá, era rara e chique -já se pagava mais
pelo que ela simbolizava como
status gastronômico e social.
Hoje a situação não mudou
muito. Muitos novos restaurantes franceses continuam
abrindo e reivindicando o título
charmoso de bistrô. Mas não
são triviais nem baratos, embora mais baratos do que os restaurantes de alta cozinha. É o
caso do Le Vin e do L'Ami (do
grupo que teve o Café Antique,
refinado e caro, e que terminou
fechando, enquanto as crias
menores prosperam), do Allez,
Allez! (réplica física das casas
parisienses mais simples, na Vila Madalena), do Chef Rouge...
Ou de outros mais baratos, embora de cozinha mais modesta,
como o La Tartine ou o Ça-Va.
São todos bem-vindos, alguns
deliciosos em seus pratos da velha e boa cozinha burguesa
francesa (coq au vin, cassoulet,
boeuf bourguignon, steak tartar, blanquette de vitelo, dobradinha, rins...). E, no entanto, o
espírito original do bistrô, da
coisa barata e bem elaborada,
que não conhecemos naquela
época dos anos 50, segue nos fazendo falta. O botequim, herança da tasca portuguesa, poderia
ter suprido esse papel, não fosse uma cozinha excessivamente
simples: tem a informalidade
de bistrô, mas não a sofisticação
que a cozinha francesa traz do
berço. Ainda poderemos um dia
ter restaurantes de bons preços, do bairro, com uma cozinha mais refinada? Certamente
que sim. Quem se habilita?
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