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ELE DIZ
Dona Maria e as garotas
ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local
Logo que descobri "02 Neurônio", me agarrei à excêntrica idéia
de promover um encontro imaginário entre as jovens autoras e dona Maria Paes de Barros.
Certamente, as cariocas Nina,
Raq e Jô nunca conversaram com
a discreta senhora paulistana.
Nem poderiam: dona Maria já
contava 94 anos quando, em 1946,
publicou "No Tempo de Dantes"
pela Brasiliense (a Paz e Terra o
relançou em 1998).
Monteiro Lobato, que assinava
o prefácio, descrevia o livro como
"um quadro panorâmico do que
fomos socialmente décadas atrás,
na reconstituição dos costumes,
dos preconceitos (...) e de tudo
mais que formava o "modus vivendi" duma numerosa família".
Numerosa e "de fidalga ascendência" -o sumo que a "Imperial Cidade de São Paulo" gerou
"antes da invasão imigrantista".
Primogênita de dez filhos, dona
Maria aproveitou a velhice para
recordar, em 134 páginas, o que
vivera na infância e juventude. As
meninas do Rio fazem o mesmo
com "02 Neurônio": traçam um
retrato de época, ainda que de
modo involuntário e muito particular. Daí a idéia do encontro, de
construir um diálogo com frases
extraídas de ambos os livros e
adaptadas sutilmente.
Um narrador cordial conduziria a conversa por caminhos amenos, concentrando-se nas incríveis coincidências que aproximam gerações tão longínquas.
Dona Maria, assim, poderia dizer:
- Naquele tempo, queridas, as
emoções tingiam-se de leves tons
de melancolia. "Ah, como se sofre
neste mundo!" -era o queixume
que, à menor contrariedade, nos
caía dos lábios.
E as meninas:
- Entendemos bem o que a senhora nos conta. Nós, mulheres,
temos vocação para sofrer. Vira e
mexe, e lá está uma chorosa, ouvindo aquela canção do Roberto.
Se existem motivos? Existem dúzias. Geralmente, a causa da lágrima é uma coisa gostosa e malvada
que chamamos de garoto.
Mesmo se quisesse revelar diferenças, o narrador cordial buscaria o mínimo de cumplicidade entre as interlocutoras, zelando para
que o diálogo não desandasse.
Dona Maria:
- Desde cedo, éramos iniciadas nas prendas domésticas, tão
necessárias quanto os estudos.
Olhares vigilantes acompanhavam todos os atos de nossas vidas,
atentos tanto à instrução como à
educação moral e religiosa. Papai,
por exemplo, costumava dizer
quando lhe tomávamos a bênção:
"Que Deus te faça uma santinha!"
E as meninas:
- Taí, uma santinha. Estamos
mesmo planejando uma marcha
pela moral e bons costumes. Nossos lemas: pare de cheirar cocaína, não seja carreirista, cuidado
com quem você leva pro quarto,
não maltrate a sua mãe (muito) e
não dê em cima do homem de
uma mulher grávida.
Agora, se um narrador espírito
de porco assumisse as rédeas da
conversa, com certeza realçaria o
nonsense. Costuraria um diálogo
de surdos, inviabilizado pelo abismo geracional.
Dona Maria:
- Depois de casadas, meninas,
não perdíamos a alegria da mocidade. Nas tardes de verão, nos
sentávamos com o marido à beira
do rio. Caladas, munidas de longas varas, esperávamos que o peixe mordesse a isca.
E as garotas:
- Antes que a senhora prossiga, temos que confessar um segredo: nós choramos segurando um
pau pequeno.
Qualquer que fosse o caminho
escolhido, porém, o narrador não
poderia omitir que dona Maria,
de palavreado tão prudente, bateu-se pela emancipação feminina. Poliglota e simpática às teses
de esquerda, lecionou história do
Brasil, arrecadou verbas para a
construção do Hospital Samaritano e dirigiu uma maternidade.
Nina, Raq e Jô, irreverentes,
desbocadas, arrombam as portas
que a dama paulista entreabriu.
Ridicularizam tabus sexuais, denunciam as próprias fragilidades
(e a dos homens), riem de comportamentos padrões e até fingem rejeitar as heroínas do passado: "Não queimaríamos os nossos sutiãs pretos por causa nenhuma. Principalmente porque
lingerie custa muito caro".
Sem dar (nem levantar) bandeira, o trio engrossa a fila das mulheres que, há pelo menos um século, só fazem avançar e surpreender. Enquanto isso, o narrador as observa, enredado na trama que, um dia, supôs nortear.
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