São Paulo, Sexta-feira, 26 de Novembro de 1999


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ELE DIZ
Dona Maria e as garotas

ARMANDO ANTENORE
da Reportagem Local

Logo que descobri "02 Neurônio", me agarrei à excêntrica idéia de promover um encontro imaginário entre as jovens autoras e dona Maria Paes de Barros.
Certamente, as cariocas Nina, Raq e Jô nunca conversaram com a discreta senhora paulistana. Nem poderiam: dona Maria já contava 94 anos quando, em 1946, publicou "No Tempo de Dantes" pela Brasiliense (a Paz e Terra o relançou em 1998).
Monteiro Lobato, que assinava o prefácio, descrevia o livro como "um quadro panorâmico do que fomos socialmente décadas atrás, na reconstituição dos costumes, dos preconceitos (...) e de tudo mais que formava o "modus vivendi" duma numerosa família". Numerosa e "de fidalga ascendência" -o sumo que a "Imperial Cidade de São Paulo" gerou "antes da invasão imigrantista".
Primogênita de dez filhos, dona Maria aproveitou a velhice para recordar, em 134 páginas, o que vivera na infância e juventude. As meninas do Rio fazem o mesmo com "02 Neurônio": traçam um retrato de época, ainda que de modo involuntário e muito particular. Daí a idéia do encontro, de construir um diálogo com frases extraídas de ambos os livros e adaptadas sutilmente.
Um narrador cordial conduziria a conversa por caminhos amenos, concentrando-se nas incríveis coincidências que aproximam gerações tão longínquas. Dona Maria, assim, poderia dizer:
- Naquele tempo, queridas, as emoções tingiam-se de leves tons de melancolia. "Ah, como se sofre neste mundo!" -era o queixume que, à menor contrariedade, nos caía dos lábios.
E as meninas:
- Entendemos bem o que a senhora nos conta. Nós, mulheres, temos vocação para sofrer. Vira e mexe, e lá está uma chorosa, ouvindo aquela canção do Roberto. Se existem motivos? Existem dúzias. Geralmente, a causa da lágrima é uma coisa gostosa e malvada que chamamos de garoto.
Mesmo se quisesse revelar diferenças, o narrador cordial buscaria o mínimo de cumplicidade entre as interlocutoras, zelando para que o diálogo não desandasse.
Dona Maria:
- Desde cedo, éramos iniciadas nas prendas domésticas, tão necessárias quanto os estudos. Olhares vigilantes acompanhavam todos os atos de nossas vidas, atentos tanto à instrução como à educação moral e religiosa. Papai, por exemplo, costumava dizer quando lhe tomávamos a bênção: "Que Deus te faça uma santinha!"
E as meninas:
- Taí, uma santinha. Estamos mesmo planejando uma marcha pela moral e bons costumes. Nossos lemas: pare de cheirar cocaína, não seja carreirista, cuidado com quem você leva pro quarto, não maltrate a sua mãe (muito) e não dê em cima do homem de uma mulher grávida.
Agora, se um narrador espírito de porco assumisse as rédeas da conversa, com certeza realçaria o nonsense. Costuraria um diálogo de surdos, inviabilizado pelo abismo geracional.
Dona Maria:
- Depois de casadas, meninas, não perdíamos a alegria da mocidade. Nas tardes de verão, nos sentávamos com o marido à beira do rio. Caladas, munidas de longas varas, esperávamos que o peixe mordesse a isca.
E as garotas:
- Antes que a senhora prossiga, temos que confessar um segredo: nós choramos segurando um pau pequeno.
Qualquer que fosse o caminho escolhido, porém, o narrador não poderia omitir que dona Maria, de palavreado tão prudente, bateu-se pela emancipação feminina. Poliglota e simpática às teses de esquerda, lecionou história do Brasil, arrecadou verbas para a construção do Hospital Samaritano e dirigiu uma maternidade.
Nina, Raq e Jô, irreverentes, desbocadas, arrombam as portas que a dama paulista entreabriu. Ridicularizam tabus sexuais, denunciam as próprias fragilidades (e a dos homens), riem de comportamentos padrões e até fingem rejeitar as heroínas do passado: "Não queimaríamos os nossos sutiãs pretos por causa nenhuma. Principalmente porque lingerie custa muito caro".
Sem dar (nem levantar) bandeira, o trio engrossa a fila das mulheres que, há pelo menos um século, só fazem avançar e surpreender. Enquanto isso, o narrador as observa, enredado na trama que, um dia, supôs nortear.


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