São Paulo, sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O texto abaixo contém um Erramos, clique aqui para conferir a correção na versão eletrônica da Folha de S.Paulo.

ANÁLISE

Coragem bíblica e humor judeu

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

Morrer no dia de Natal foi a derradeira, e muito típica, ironia do dramaturgo inglês Harold Pinter. É verdade que, sendo de origem judaica, e conhecido pelo ceticismo, Pinter não deveria ser um grande adepto desta, ou de outras festividades. Independente, rebelde e dono de talento impressionante, foi um dos grandes autores teatrais de nosso tempo, um exemplo da vertente que o crítico Martin Esslin denominou de "teatro do absurdo", e que inclui Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Friedrich Dürrenmatt, Edward Albee, Fernando Arrabal, Tom Stoppard e, até certo ponto, Bertolt Brecht.
Pinter era também um intelectual atuante (leia acima). Crítico dos EUA e defensor dos direitos humanos, teve também atitudes discutíveis, como apoiar Slobodan Milosevic, presidente da ex-Iugoslávia julgado por crimes de guerra.
Nascido em 1930, ainda adolescente Pinter começou a escrever poesia. Logo, porém, encaminhou-se para o teatro. Chegou a cursar a Real Academia de Arte Dramática, mas deu um jeito de cair fora, simulando um colapso nervoso, e prosseguiu sozinho sua carreira, primeiro como ator e depois como autor e diretor.
Uma de suas primeiras peças, "The Dumb Waiter" (o garçom idiota), foi escrita por sugestão de um amigo em quatro dias, e nela já encontramos os elementos que caracterizariam sua obra: um incidente banal revela-se misterioso e ameaçador ("teatro da ameaça" foi uma expressão usada para definir sua obra teatral), mas com um elemento de comédia sempre presente. A isso acrescenta-se uma linguagem viva, em que cada palavra (e também as pausas, não poucas: ele conhecia a importância ansiogênica do silêncio) tem importância transcendente, assim como a surrealista ambigüidade dos diálogos.
Há exatos 50 anos, Harold Pinter escrevia: "Não há uma diferença definitiva entre o que é real e o que é irreal, entre o que é verdadeiro e o que é falso. Uma coisa pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo".
Soberba definição dos tempos em que vivemos, tempos de confusão ideológica, política e moral. Tempos que Harold Pinter descreveu como ninguém, com a coragem de um verdadeiro profeta bíblico e o humor de um alfaite judeu.


Texto Anterior: Escritor foi um crítico feroz de Tony Blair e George W. Bush
Próximo Texto: O poder das palavras
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.