São Paulo, segunda-feira, 27 de fevereiro de 2006

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FORMA&ESPAÇO

Com os burros n'água

GUILHERME WISNIK
COLUNISTA DA FOLHA

Há muito que o sistema de trocas humanas desgarrou-se da relação material da troca de produtos e migrou para a circulação de mercadorias, gerando "fuga de capitais" e se tornando um código sem matéria, assim como a linguagem. Marx, que um século e meio atrás descreveu a volatilidade dessa circulação, tentou, no entanto, fixá-la em uma imagem razoavelmente concreta: a "forma-mercadoria".
Mas como é que as coisas circulam e se transmutam em outras? Para onde elas vão? Quem é que dá o seu testemunho? O que é que se pode reter dessa experiência da passagem? Todas essas perguntas são questões que alimentam o trabalho do artista plástico Nuno Ramos, em exposição no Instituto Tomie Ohtake. E são, na verdade, o fio da meada que articula obras tão diversas como "Entre" (circuitos-fechados de tubos de vidro em que se misturam petróleo e glicose, e água do mar e vinagre), e "Vai, Vai" (instalação-vivência em que três burricos carregam caixas de som que emitem vozes).
Nessa instalação, materiais e palavras são postos em circulação, como que trocando suas propriedades: os burros se alimentam de sal, feno e água -entidades que, na obra, ganham vozes próprias, vindas de caixas de som semienterradas em montes de feno e sal, e submersas em tinas com água. Sendo que o ato de comer tais alimentos e de beber a água, por parte dos burros, descobre progressivamente as vozes soterradas (que eles, por sua vez, também carregam no lombo). Quer dizer que, nesse circuito-fechado, os burros se alimentam dos materiais cujas vozes simbolicamente carregam, e ouvem as vozes daquilo que os alimenta.
O mote de tais vozes é o prólogo da canção "Se Todos Fossem Iguais a Você", de Tom e Vinícius: "Vai, tua vida, teu caminho é de paz e amor/ Vai, tua vida é uma linda canção de amor/ Abre teus braços e canta a última esperança/ Esperança divina de amar em paz". Esse tema, cantarolado como "voz da água", se rebate na "voz do sal" -um discurso impaciente que exorta ao movimento ("vai, vai"), mas, ao mesmo tempo, o anula em tom niilista: "Quem vai não é você, é o teu caminho. Pra onde você vai, se quem vai é ele? Se quem vai, vai sozinho?".
Instalações com animais vivos já foram feitas por artistas como Janis Kounellis e Joseph Beuys. O primeiro, levando 12 cavalos para interior de uma galeria em Roma, e o segundo, convivendo ele próprio com um coiote numa galeria em Nova York, protegido por um manto de feltro e empunhando um cajado. Mas, enquanto ali cavalo e coiote são exemplares de uma natureza indomável e ancestral, cuja força Beuys (feito pastor) toma emprestado e transforma em ação -como que a dizer aos homens: "sigam-me"-, aqui os jumentos de Nuno são animais domésticos e resignados, símbolos da esterilidade e do trabalho diário e alienado.
Vem daí a profunda melancolia existencial que atravessa a "obra" e esvazia o tom imperativo do título ("Vai, Vai"). Ir para onde? E por quê? Como uma montanha de feno que se espalha ao vento, o trabalho dissipa a energia de movimento que acabara de criar, aludindo à percepção de que neste país -ainda difuso e malformado-, os burros dão sempre n'água.


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