São Paulo, terça-feira, 27 de fevereiro de 2007

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BERNARDO CARVALHO

Cruzar a fronteira

Ao "cruzar a fronteira" (e aqui o sentido da frase é múltiplo), o indivíduo reconhece a alteridade

O POLONÊS Ryszard Kapuscinski, que morreu no mês passado, em Varsóvia, aos 74 anos, depois de passar a vida viajando e publicando relatos de viagens, de guerras e de revoluções, que são verdadeiras obras-primas do jornalismo contemporâneo, escreveu que no início da carreira só pensava em "cruzar a fronteira". O desejo poderia ser interpretado como escapismo (da opressão da Polônia comunista dos anos 50), se o autor não tivesse ido buscar realidades bem mais terríveis do que a sua.
O que o levava à aventura e a pôr a própria vida em risco era uma curiosidade irremediável pelo diverso. "Como era do outro lado? É claro que seria... diferente. (...) Tudo se resumia em cruzar a fronteira. Tanto fazia qual. O que importava não era o destino, mas o ato místico e transcendente."
Em "As Vozes de Marrakech", relato recém-publicado pela Cosacnaify, o Prêmio Nobel Elias Canetti narra a breve visita que fez ao Marrocos, em 1954, pouco antes de Kapuscinski dar início às suas viagens. Canetti acompanhou por algumas semanas uma equipe de documentaristas da BBC. A julgar pelo título do pequeno volume e pela recorrência do tema ao longo do texto, o ato transcendente da viagem para o autor do monumental "Auto-da-fé" (cujo protagonista é um sinólogo) tem a ver com a linguagem e com a sua perda. Diante de uma língua que não compreende, Canetti procura o que a linguagem esconde.
O escritor ouve o grito repetitivo dos mendigos cegos no mercado. Todos pedem esmolas em nome de Alá. "Sonho com um homem que desaprende as línguas da terra até não compreender mais nada em lugar nenhum. O que há na linguagem? O que ela esconde? De que ela nos priva? Durante as semanas que passei no Marrocos, não tentei aprender nem o árabe nem as línguas berberes. Não queria perder nada da força de seus gritos estranhos. Queria me expor aos sons em si mesmos."
A procura vai levá-lo até a grande praça e a uma trouxinha marrom largada no chão, "menos que uma voz", emitindo um único som: "ä-ä-ä-ä-ä". O mendigo reduzido a uma trouxinha marrom sem rosto, sem boca, sem braços, invisível não só aos olhos do turista estrangeiro mas ao transeunte local, dizendo menos do que Alá, é a resposta à pergunta do escritor. A criatura invisível, incompreensível, aquém da linguagem, é o que a linguagem esconde. Canetti entende que a razão do seu espanto e do seu fascínio vem da simples constatação de que, privada de tudo, da linguagem e do nome de Deus, ainda assim essa criatura vive e o único som que ela emite, ininteligível, sobrevive a todos os demais na grande praça.
Para um escritor cansado do mesmo ("Poucas vezes me senti bem entre os homens das nossas terras que vivem de literatura. Eu os desprezo porque desprezo alguma coisa em mim mesmo"), aí estão todos os mistérios, a diferença, o que a linguagem não pode dizer - e é curioso lembrar que um dos contos mais poderosos de Paul Bowles ("Um Episódio Distante", de 1945) narra a história de um lingüista europeu que, fascinado pelas línguas do deserto do Marrocos, acaba literalmente perdendo a sua, cortada a faca, reduzido a escravo balbuciante dos povos que estuda.
Sobre a experiência transcendental das viagens e da literatura, há ainda o incontornável "Ensaio sobre o Exotismo" (1908), do francês Victor Segalen. Ao contrário do relato de viagem praticado na época, a literatura que defende Segalen não cruza a fronteira para conhecer o outro e reduzi-lo a objeto do seu saber, mas para, tomando consciência do mistério de uma alteridade intransponível, afirmar a radicalidade da sua própria individualidade, que não é outra coisa senão a capacidade de ver e cultivar a diferença em si mesmo - também como autor e como artista.
Segalen resgata o termo "exotismo" não como "esse estado caleidoscópico do turista e do espectador medíocre", mas "reação viva e curiosa diante do choque de uma individualidade forte contra uma objetividade cuja distância ela percebe e saboreia". Ou seja, diante do exótico, a consciência de uma "inadaptação ao meio" (Segalen era, além do mais, um excêntrico solitário) permite ao indivíduo conceber-se de modo diferente. Ao "cruzar a fronteira" (e aqui o sentido da frase é múltiplo), o indivíduo reconhece a alteridade na própria pele e entende que, assim como os outros não correspondem à imagem que se faz deles, tampouco ele corresponde à imagem que faz de si mesmo. Por um instante, ouve o que a linguagem esconde. E o que a literatura persegue.


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