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BERNARDO CARVALHO
Cruzar a fronteira
Ao "cruzar a fronteira" (e aqui o sentido da frase é múltiplo), o indivíduo reconhece a alteridade
O POLONÊS Ryszard Kapuscinski, que morreu no mês
passado, em Varsóvia, aos 74
anos, depois de passar a vida viajando e publicando relatos de viagens,
de guerras e de revoluções, que são
verdadeiras obras-primas do jornalismo contemporâneo, escreveu que
no início da carreira só pensava em
"cruzar a fronteira". O desejo poderia ser interpretado como escapismo (da opressão da Polônia comunista dos anos 50), se o autor não tivesse ido buscar realidades bem
mais terríveis do que a sua.
O que o levava à aventura e a pôr a
própria vida em risco era uma curiosidade irremediável pelo diverso.
"Como era do outro lado? É claro
que seria... diferente. (...) Tudo se resumia em cruzar a fronteira. Tanto
fazia qual. O que importava não era
o destino, mas o ato místico e transcendente."
Em "As Vozes de Marrakech", relato recém-publicado pela Cosacnaify, o Prêmio Nobel Elias Canetti
narra a breve visita que fez ao Marrocos, em 1954, pouco antes de Kapuscinski dar início às suas viagens.
Canetti acompanhou por algumas
semanas uma equipe de documentaristas da BBC. A julgar pelo título
do pequeno volume e pela recorrência do tema ao longo do texto, o ato
transcendente da viagem para o autor do monumental "Auto-da-fé"
(cujo protagonista é um sinólogo)
tem a ver com a linguagem e com a
sua perda. Diante de uma língua que
não compreende, Canetti procura o
que a linguagem esconde.
O escritor ouve o grito repetitivo
dos mendigos cegos no mercado.
Todos pedem esmolas em nome de
Alá. "Sonho com um homem que desaprende as línguas da terra até não
compreender mais nada em lugar
nenhum. O que há na linguagem? O
que ela esconde? De que ela nos priva? Durante as semanas que passei
no Marrocos, não tentei aprender
nem o árabe nem as línguas berberes. Não queria perder nada da força
de seus gritos estranhos. Queria me
expor aos sons em si mesmos."
A procura vai levá-lo até a grande
praça e a uma trouxinha marrom
largada no chão, "menos que uma
voz", emitindo um único som: "ä-ä-ä-ä-ä". O mendigo reduzido a uma
trouxinha marrom sem rosto, sem
boca, sem braços, invisível não só
aos olhos do turista estrangeiro mas
ao transeunte local, dizendo menos
do que Alá, é a resposta à pergunta
do escritor. A criatura invisível, incompreensível, aquém da linguagem, é o que a linguagem esconde.
Canetti entende que a razão do seu
espanto e do seu fascínio vem da
simples constatação de que, privada
de tudo, da linguagem e do nome de
Deus, ainda assim essa criatura vive
e o único som que ela emite, ininteligível, sobrevive a todos os demais na
grande praça.
Para um escritor cansado do mesmo ("Poucas vezes me senti bem entre os homens das nossas terras que
vivem de literatura. Eu os desprezo
porque desprezo alguma coisa em
mim mesmo"), aí estão todos os
mistérios, a diferença, o que a linguagem não pode dizer - e é curioso
lembrar que um dos contos mais poderosos de Paul Bowles ("Um Episódio Distante", de 1945) narra a história de um lingüista europeu que, fascinado pelas línguas do deserto do
Marrocos, acaba literalmente perdendo a sua, cortada a faca, reduzido
a escravo balbuciante dos povos que
estuda.
Sobre a experiência transcendental das viagens e da literatura, há ainda o incontornável "Ensaio sobre o
Exotismo" (1908), do francês Victor
Segalen. Ao contrário do relato de
viagem praticado na época, a literatura que defende Segalen não cruza
a fronteira para conhecer o outro e
reduzi-lo a objeto do seu saber, mas
para, tomando consciência do mistério de uma alteridade intransponível, afirmar a radicalidade da sua
própria individualidade, que não é
outra coisa senão a capacidade de
ver e cultivar a diferença em si mesmo - também como autor e como
artista.
Segalen resgata o termo "exotismo" não como "esse estado caleidoscópico do turista e do espectador
medíocre", mas "reação viva e curiosa diante do choque de uma individualidade forte contra uma objetividade cuja distância ela percebe e saboreia". Ou seja, diante do exótico, a
consciência de uma "inadaptação ao
meio" (Segalen era, além do mais,
um excêntrico solitário) permite ao
indivíduo conceber-se de modo diferente. Ao "cruzar a fronteira" (e
aqui o sentido da frase é múltiplo), o
indivíduo reconhece a alteridade na
própria pele e entende que, assim
como os outros não correspondem à
imagem que se faz deles, tampouco
ele corresponde à imagem que faz de
si mesmo. Por um instante, ouve o
que a linguagem esconde. E o que a
literatura persegue.
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