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Silvério, Zweig, usos e abusos do passado
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
Desbancada do pedestal durante breves dias, a Economia
deu lugar à História. Como é
ciência recente e não Arte, carece de musa. No máximo, símbolo micro ou calculadora eletrônica.
Neste breve reinado de Clio,
inspiradora da História, numa
infeliz estocada de improviso, o
presidente da República deixou no ar uma comparação entre o governador Itamar Franco e a figura de Joaquim Silvério dos Reis, o traidor no episódio da Conjuração Mineira.
O desabafo pode até se justificar: há cinco anos ininterruptos Itamar vem pronunciando
os maiores desaforos ao sucessor, sobretudo no exterior, onde foi seu representante. Quaisquer que sejam os motivos, a tirada foi imperdoável: de um
chefe de Estado espera-se que
tenha nervos e estômago para
pairar acima das paixões, humores e suscetibilidades dos comuns mortais. Inclusive ex-presidentes esquecidos da dignidade perdida.
Winston Churchill, o primeiro-ministro que conduziu a Inglaterra na luta contra a Alemanha nazista, considerado
um dos maiores oradores de
língua inglesa na segunda metade do século, também historiador laureado, não confiava
nos improvisos: as peças que o
tornaram famoso foram previamente elaboradas e, graças
à prodigiosa memória, apresentadas como inspiração do
momento. Bill Clinton conseguiu escapar incólume deste
"annus horribilis" porque foi
preparado e preparou-se para
não cometer deslizes declaratórios. Mesmo assim encalacrou-se com alguns.
O uso dos mitos históricos é
recurso pobre. Corre o risco de
não ser entendido. FHC já foi
tachado por jornalistas de peso
como (Pierre) Laval, o político
que entregou a França aos nazistas. Fez bem em não retaliar.
Porque muitos desses estigmas
retóricos, alguns aprendidos
nos bancos escolares, acabam
sendo desmentidos (não é o caso de Laval).
Como nos outros ofícios, o
historiador deve ser movido
por aptidões. E, por causa delas, assumir compromissos com
a natureza da sua atuação.
Não é preciso redigir um código
de conduta e probidade. Arte
ou ciência, historiografia ou
cliografia (como os mais exigentes a designam), a função
social de resgatar o passado
tem responsabilidades. Exige
compostura. Isso vale sobretudo para a biografia, ramo ainda mais nobre da História, porque relaciona-se diretamente
com a condição humana.
Morto ou não, o biografado
exige do biógrafo um mínimo
de reverência. Mesmo quando
se trata de "biografias negativas". Caso do Marques de Sade,
patrono involuntário de Tiazinha e patriarca dos pedófilos
da Internet, celebrado nos idos
de 68 como marginal revolucionário, que agora ganhou
duas biografias implacáveis,
profundamente humanas (""At
Home with the Marquis de Sade: a Life", de Francine du Plessix Gray, Simon & Schuster,
491 págs.; ""Sade: a Biographical Essay", de Laurence Bongie,
Univ. Chicago Press, 336 págs.).
Virginia Woolf, que suicidou-se em 1941, filha de biógrafo, viveu em meio a biógrafos
(Lytton Stratchey, o maior deles) e produziu inúmeros ensaios sobre a arte de escrever
vidas (a expressão é dela).
Num deles afirmou que certas
biografias devem ser reescritas
a cada geração. Cada época
produz um olhar e a soma desses olhares, devidamente entrelaçados e referenciados, tem o
dom de reproduzir as dimensões daquela existência.
O 57º aniversário do pacto de
morte de Stefan e Lotte Zweig
(Petrópolis, RJ, 23/2/1942) foi
comemorado de forma inusitada e avacalhada. A Editora Record lançou uma versão da
obra de Dominique Bona, especialista francesa em colagens
feitas em alta velocidade. Por
mais agressiva que seja, sua
editora (a respeitada Plon) não
ousou designá-la na capa como
"biografia". O título original é
"Stefan Zweig, l'Ami Blessé". A
Record não teve esse cuidado.
Temos o privilégio de conviver com os dois remanescentes
do vasto círculo mundial de
amigos de Zweig: Abrahão
Koogan, seu editor e protetor
(período 1936-1942), e seu advogado, Samuel Malamud. O
Brasil, que tanta importância
teve nos anos finais da vida e
na morte de Zweig, não mereceu uma esticada da bela Bona:
compilou o que estava disponível nos idiomas que conhece e
mandou brasa. Ignorou arrogantemente o que foi publicado
lá no fim do mundo sobre
Zweig. A Record, que opera
neste fim de mundo há meio século, não tem essa desculpa e
podia tê-la alertado.
Uma das obras consultadas
por mademoiselle foi "L'Avenir
de la Nostalgie", designada
modestamente pelo autor,
Jean-Jacques Lafaye, como
"ensaio". Como entende português e nos conhecemos desde
1981, mandei-lhe um exemplar
de "Morte no Paraíso, a Tragédia de Stefan Zweig" (Nova
Fronteira, Rio). Dele serviu-se
fartamente anos depois, mas,
na abertura, fez o indispensável e, a meu ver, exagerado, registro. Bona pilhou o material
sem cerimônias.
Canibalizou não só a documentação que coligi, mas, principalmente, os depoimentos que
obtive de pessoas que conviveram com Zweig e Lotte ou estiveram perto por ocasião da
morte. Esquecendo os aspectos
morais, mlle. Bona foi afoita:
apropriou-se de material de terceira mão, assumindo-o sob sua
responsabilidade. Esqueceu que
poderia estar reproduzindo
mentiras e fantasias. Desqualificou-se como olhar, fugiu da
indispensável parceria entre
biógrafos que confere tanta nobreza e credibilidade a esse tipo
de empreitada.
Outra "homenagem", viciada
e viciosa, agora prestada a
Zweig, vem na linha "revisionista", autêntica picaretagem
histórica e biográfica. Um advogado carioca que se pretende
psicanalista, patrocinado por
um grupo de medusas da historiografia paulistana, vai a um
colóquio em Tel-Aviv propor
uma revisão da versão da morte
dos Zweig: não se suicidaram,
foram assassinados pelos agentes da Gestapo no Brasil.
A doida suposição partiu da
leitura de apenas uma informação do meu livro -que o governo Vargas, junto com o luto oficial, decidira dispensar as autópsias. Não leu o resto: o depoimento que obtive do médico
que assinou os atestados de óbito, o registro da ocorrência policial, o levantamento nominal
das 13 cartas de despedida (algumas reproduzidas). Ignorou
a íntegra da famosa "Declaração" manuscrita (título em português, texto em alemão) em
que o infeliz escritor apresenta
ao mundo as razões para abdicar da vida.
Nem sequer viu a ilustração
da cena macabra e celebre, registrada por dezenas de fotógrafos: o casal estendido tranquilamente, ela abraçando o
marido (tentei demonstrar que
se matou horas depois). O revisionista não reparou nas garrafas de água Salutaris com os
restos dos tóxicos. Teve uma
idéia amalucada e agora quer
os seus 15 minutos de fama.
Zweig merece do Brasil um
pouco mais de carinho. E respeito. O inventor do paraíso
não aguentou, nele matou-se.
Só isso daria para encher uma
dúzia de trabalhos históricos e
biográficos. Originais, probos e
decentes.
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