São Paulo, Sábado, 27 de Fevereiro de 1999
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Silvério, Zweig, usos e abusos do passado

ALBERTO DINES

Colunista da Folha

Desbancada do pedestal durante breves dias, a Economia deu lugar à História. Como é ciência recente e não Arte, carece de musa. No máximo, símbolo micro ou calculadora eletrônica.
Neste breve reinado de Clio, inspiradora da História, numa infeliz estocada de improviso, o presidente da República deixou no ar uma comparação entre o governador Itamar Franco e a figura de Joaquim Silvério dos Reis, o traidor no episódio da Conjuração Mineira.
O desabafo pode até se justificar: há cinco anos ininterruptos Itamar vem pronunciando os maiores desaforos ao sucessor, sobretudo no exterior, onde foi seu representante. Quaisquer que sejam os motivos, a tirada foi imperdoável: de um chefe de Estado espera-se que tenha nervos e estômago para pairar acima das paixões, humores e suscetibilidades dos comuns mortais. Inclusive ex-presidentes esquecidos da dignidade perdida.
Winston Churchill, o primeiro-ministro que conduziu a Inglaterra na luta contra a Alemanha nazista, considerado um dos maiores oradores de língua inglesa na segunda metade do século, também historiador laureado, não confiava nos improvisos: as peças que o tornaram famoso foram previamente elaboradas e, graças à prodigiosa memória, apresentadas como inspiração do momento. Bill Clinton conseguiu escapar incólume deste "annus horribilis" porque foi preparado e preparou-se para não cometer deslizes declaratórios. Mesmo assim encalacrou-se com alguns.
O uso dos mitos históricos é recurso pobre. Corre o risco de não ser entendido. FHC já foi tachado por jornalistas de peso como (Pierre) Laval, o político que entregou a França aos nazistas. Fez bem em não retaliar. Porque muitos desses estigmas retóricos, alguns aprendidos nos bancos escolares, acabam sendo desmentidos (não é o caso de Laval).
Como nos outros ofícios, o historiador deve ser movido por aptidões. E, por causa delas, assumir compromissos com a natureza da sua atuação. Não é preciso redigir um código de conduta e probidade. Arte ou ciência, historiografia ou cliografia (como os mais exigentes a designam), a função social de resgatar o passado tem responsabilidades. Exige compostura. Isso vale sobretudo para a biografia, ramo ainda mais nobre da História, porque relaciona-se diretamente com a condição humana.
Morto ou não, o biografado exige do biógrafo um mínimo de reverência. Mesmo quando se trata de "biografias negativas". Caso do Marques de Sade, patrono involuntário de Tiazinha e patriarca dos pedófilos da Internet, celebrado nos idos de 68 como marginal revolucionário, que agora ganhou duas biografias implacáveis, profundamente humanas (""At Home with the Marquis de Sade: a Life", de Francine du Plessix Gray, Simon & Schuster, 491 págs.; ""Sade: a Biographical Essay", de Laurence Bongie, Univ. Chicago Press, 336 págs.).
Virginia Woolf, que suicidou-se em 1941, filha de biógrafo, viveu em meio a biógrafos (Lytton Stratchey, o maior deles) e produziu inúmeros ensaios sobre a arte de escrever vidas (a expressão é dela). Num deles afirmou que certas biografias devem ser reescritas a cada geração. Cada época produz um olhar e a soma desses olhares, devidamente entrelaçados e referenciados, tem o dom de reproduzir as dimensões daquela existência.
O 57º aniversário do pacto de morte de Stefan e Lotte Zweig (Petrópolis, RJ, 23/2/1942) foi comemorado de forma inusitada e avacalhada. A Editora Record lançou uma versão da obra de Dominique Bona, especialista francesa em colagens feitas em alta velocidade. Por mais agressiva que seja, sua editora (a respeitada Plon) não ousou designá-la na capa como "biografia". O título original é "Stefan Zweig, l'Ami Blessé". A Record não teve esse cuidado.
Temos o privilégio de conviver com os dois remanescentes do vasto círculo mundial de amigos de Zweig: Abrahão Koogan, seu editor e protetor (período 1936-1942), e seu advogado, Samuel Malamud. O Brasil, que tanta importância teve nos anos finais da vida e na morte de Zweig, não mereceu uma esticada da bela Bona: compilou o que estava disponível nos idiomas que conhece e mandou brasa. Ignorou arrogantemente o que foi publicado lá no fim do mundo sobre Zweig. A Record, que opera neste fim de mundo há meio século, não tem essa desculpa e podia tê-la alertado.
Uma das obras consultadas por mademoiselle foi "L'Avenir de la Nostalgie", designada modestamente pelo autor, Jean-Jacques Lafaye, como "ensaio". Como entende português e nos conhecemos desde 1981, mandei-lhe um exemplar de "Morte no Paraíso, a Tragédia de Stefan Zweig" (Nova Fronteira, Rio). Dele serviu-se fartamente anos depois, mas, na abertura, fez o indispensável e, a meu ver, exagerado, registro. Bona pilhou o material sem cerimônias.
Canibalizou não só a documentação que coligi, mas, principalmente, os depoimentos que obtive de pessoas que conviveram com Zweig e Lotte ou estiveram perto por ocasião da morte. Esquecendo os aspectos morais, mlle. Bona foi afoita: apropriou-se de material de terceira mão, assumindo-o sob sua responsabilidade. Esqueceu que poderia estar reproduzindo mentiras e fantasias. Desqualificou-se como olhar, fugiu da indispensável parceria entre biógrafos que confere tanta nobreza e credibilidade a esse tipo de empreitada.
Outra "homenagem", viciada e viciosa, agora prestada a Zweig, vem na linha "revisionista", autêntica picaretagem histórica e biográfica. Um advogado carioca que se pretende psicanalista, patrocinado por um grupo de medusas da historiografia paulistana, vai a um colóquio em Tel-Aviv propor uma revisão da versão da morte dos Zweig: não se suicidaram, foram assassinados pelos agentes da Gestapo no Brasil.
A doida suposição partiu da leitura de apenas uma informação do meu livro -que o governo Vargas, junto com o luto oficial, decidira dispensar as autópsias. Não leu o resto: o depoimento que obtive do médico que assinou os atestados de óbito, o registro da ocorrência policial, o levantamento nominal das 13 cartas de despedida (algumas reproduzidas). Ignorou a íntegra da famosa "Declaração" manuscrita (título em português, texto em alemão) em que o infeliz escritor apresenta ao mundo as razões para abdicar da vida.
Nem sequer viu a ilustração da cena macabra e celebre, registrada por dezenas de fotógrafos: o casal estendido tranquilamente, ela abraçando o marido (tentei demonstrar que se matou horas depois). O revisionista não reparou nas garrafas de água Salutaris com os restos dos tóxicos. Teve uma idéia amalucada e agora quer os seus 15 minutos de fama.
Zweig merece do Brasil um pouco mais de carinho. E respeito. O inventor do paraíso não aguentou, nele matou-se. Só isso daria para encher uma dúzia de trabalhos históricos e biográficos. Originais, probos e decentes.


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