São Paulo, Sábado, 27 de Fevereiro de 1999
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MEMÓRIA
Principal historiador da Inconfidência Mineira alerta sobre o perigo da insinuação de comparação entre Itamar Franco e Silvério dos Reis
FHC pode estar brincando com fogo, diz Maxwell

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
da Sucursal de Brasília

O personagem histórico da semana, Joaquim Silvério dos Reis, não se saiu tão bem na vida quanto a maioria dos brasileiros imagina.
A denúncia que fez da Inconfidência Mineira lhe rendeu vantagens materiais, mas nem tantas: ele foi obrigado a pagar as suas dívidas com o fisco português, além de ter batalhado durante 15 anos até receber alguma recompensa.
Além disso, a traição tornou sua vida inviável em Minas Gerais e no Rio e ele foi obrigado a passar os seus últimos anos no Maranhão.
Silvério dos Reis saiu do relativo anonimato dos livros de história do Brasil para as primeiras páginas dos jornais porque o presidente Fernando Henrique Cardoso insinuou que o governador de Minas, Itamar Franco, age de acordo com seu modelo moral.
FHC pode estar brincando com fogo, alerta o principal historiador da Inconfidência, Kenneth Maxwell, 58, britânico radicado nos EUA, expoente do primeiro time da "colônia brasilianista".
"Não posso imaginar insulto mais profundo para um mineiro", disse Maxwell à Folha, por telefone. "Reavivar essas memórias históricas pode ser muito perigoso."
Joaquim Silvério dos Reis, ao contrário da maioria dos inconfidentes, era português de nascimento. Assim, da ótica de Portugal, ele pode ser visto como herói; traidores, dessa perspectiva, eram Tomás Antônio Gonzaga, Alvarenga Peixoto, Tiradentes e os outros que lutavam pela secessão.
Mas Maxwell, autor do clássico "A Devassa da Devassa", sobre a Inconfidência, acha que Silvério dos Reis não foi movido por interesses patrióticos, mas por razões apenas egoístas e financeiras.
Silvério dos Reis chegou a conspirar com os inconfidentes. Resolveu denunciá-los em troca de perdão para as dívidas que ele, como muitos residentes de Minas naquele tempo (segunda metade do século 18), tinha com o Tesouro.
Falou com o visconde de Barbacena, governador de Minas, que o mandou ao Rio para tratar com o vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza. Depois de ter ouvido a denúncia, o vice-rei colocou Silvério dos Reis na cadeia por um tempo.
Foi solto porque o vice-rei se deu conta de que mantê-lo preso desestimularia outras confissões.
Mas, como os demais inconfidentes, Silvério dos Reis perdeu todas as suas propriedades. De 1792, quando acabou o processo contra os inconfidentes, até 1807, ele ficou no Rio, apelando a Lisboa para receber a recompensa pela traição.
A persistência venceu, em parte. Suas propriedades lhe foram devolvidas, mas as dívidas não foram perdoadas. Ele teve de pagá-las.
Àquela altura, ele havia se tornado um aborrecimento para as autoridades coloniais e um pária entre os brasileiros. Por isso, resolveu se mudar para longe, Maranhão, onde morreria em 1819.
Não foi só ele quem agiu por razões econômicas no episódio da Inconfidência. Maxwell foi o primeiro historiador a mostrar que, além dos ideais libertários, existia uma outra ordem de interesses, práticos, materiais, que fez os inconfidentes planejar a revolta.
Assim como FHC não foi o único a invocar esses episódios históricos nos atuais debates políticos. Itamar Franco se comparou a Tiradentes em várias ocasiões.
O qual, aliás, não foi o líder do movimento, como muitos supõem; foi apenas quem recebeu a punição mais exemplar, talvez por ter sido o único a assumir inteira responsabilidade pelo levante, talvez por ter sido o que dispunha de menos recursos econômicos e de menos padrinhos influentes.
Afinal, em matéria de traição, tudo é relativo. Como dizia o satirista inglês John Harrigton, "a traição nunca prospera mesmo porque, se prosperar, ninguém se atreverá a chamá-la de tal".


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