São Paulo, sábado, 27 de março de 2004

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RÉPLICA

Crítica de Coelho padece de minoridade crônica

LUIS ANTÔNIO GIRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

A leviandade nunca figurou entre as virtudes de Marcelo Coelho, analista da vida inteligente a quem o leitor aprendeu a admirar. A cultura universal é campo que vigia como inspetor das virtudes do intelecto, pronto a destilar elogios, sobretudo para seus pares de alta erudição.
Por isso, fiquei surpreso com a resenha que ele estampou no sábado, 20 de março, sobre o ensaio histórico "Minoridade Crítica", de minha autoria. A resenha em questão é um documento injusto e repleto do destempero que costuma se apossar de algumas mentes no exercício da controvérsia. Não atiro a primeira pedra porque eu próprio já incorri na falha. Quero, apenas, contestar os argumentos do articulista.
"Minoridade Crítica" aborda 35 anos de história dos achados, insultos e insanidades dos primeiros críticos culturais do Brasil -antepassados do articulista. Ao ler as aventuras e tropeços de polemistas como Alencar e Machado de Assis, Coelho parece ter virado presa do espírito romântico e desfiou um rondó de incorreções.
A primeira delas é valer-se do episódio da apresentação da ópera "Torquato Tasso" em 1844, relatado no volume. Trata-se de uma das muitas descobertas do livro, mas MC pinça-a para desmerecer o ensaísta. Tachou-a de apressada e eivada de erros. Estes, se existem -e podem existir num trabalho de levantamento de fontes-, ele deveria tê-los apontado, para serem corrigidos.
Não creio que ele o possa de fato anotá-los, já que não consta que tenha se debruçado sobre o tema. E eis o ponto mais lamentável, na afirmação que faz de que a pesquisa teria sido realizada às pressas para ser entregue à banca.
O livro informa que ela se iniciou há nove anos, a tese foi defendida em 99 e só agora publicada. O texto foi discutido em aula, num curso que ministrei na USP em 2002. "Minoridade Crítica" pode ser tudo, menos ligeira, pois consumiu anos de investigação em arquivos e bibliotecas. Como resultado, revelou-se para o autor um terreno insólito, "nota de rodapé" da história da inteligência.
Desprezando tudo, MC volta sua pena aguda contra a academia. Desvaloriza o fato de eu ter arrolado hipóteses e de havê-las testado. Ora, um trabalho indutivo tem de seguir tal caminho. O resenhista despreza a conceituação de estética e cânone, tentando rebaixar as idéias discutidas no primeiro capítulo. Não foi pretensão minha elaborar uma teoria sobre estética da música, e sim abordar as idéias de Athanasius Kircher e Alexander Baumgarten -autores que integravam a educação do tempo. E a seção foi reelaborada para a edição, para originar um ensaio. Ao lhe atribuir superficialidade, Coelho chega a dizer que Schumann e Wagner não foram citados -e basta consultar o índice para notar que o foram, ainda que ambos tenham escassa influência entre os folhetinistas diletantes. Ele acusa o ensaio de não explicar por que José Maurício foi um mito nativista. Convenhamos: ele poderia ter lido o capítulo dedicado ao Padre Mestre e a análise do ensaio de Araújo Porto-Alegre para verificar as razões pelas quais os românticos construíram o mito.
Denomina, por fim, José Eduardo Martins como orientador da dissertação. O orientador, diz o livro, foi o maestro George Olivier Toni. Na ânsia de atacar e ferir às cegas, Coelho não leu o livro com atenção -fato decepcionante para quem, como eu, aprendeu, nos nove anos em que o livro foi escrito, a sorver com deleite suas novelas tristes, suas histórias infantis -como "Minhas Férias"-, além do tratado "Folha Explica Montaigne". Todos opus de uma mente poderosa que não se atemoriza em saltitar pelos diversos registros do pensamento humano. Pena ele ter optado, na resenha, por imitar o folhetinista que "borboleteava" pelos assuntos, descrito com ironia por Machado. "Minoridade Crítica" despertou no espírito do censor de plantão a fúria dos antigos folhetinistas. Como tal, arremetou-se contra um trabalho de pesquisa que só desejou ajudar no desbravamento de um campo de estudos.
Saltar páginas não significa ler, e sim enganar a si próprio e ao leitor.
Não é, contudo, pecado exclusivo do nosso Coelho. Ele apenas corrobora a idéia de que vivemos ainda hoje a minoridade crônica da crítica. Nela, uma sentença bem torneada vale mais que anos de pesquisa.


Luis Antônio Giron é editor de Cultura da revista "Época"


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