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CONTARDO CALLIGARIS
As falsas chantagens da Guerra Fria
Na semana retrasada, nesta coluna, comentei a tragédia de
Elián, a criança cubana que segue
invadindo o noticiário. Sobretudo
tentei entender porque esta história estava se tornando tão relevante.
Recebi, nos dias seguintes, muitos e-mails e outras correspondências de leitores. Entre as mensagens, algumas eram surpreendentemente extremas: elogios entusiasmados ou então críticas acirradíssimas. Achei que, em ambos
os casos, havia um mal-entendido. Por isso volto ao assunto.
Desde então, o garoto foi devolvido à força para o pai. Provavelmente esta é a melhor escolha para ele. Tanto mais que os parentes
de Miami, com quem ele morava
desde seu resgate, enlouqueceram
de vez e tentaram pesadamente
açular Elián contra o pai.
O menino não precisava de
mais essa violência . Mesmo assim, o bê-á-bá da psicologia sugere uma certa prudência. Para
Elián, fugir de Cuba para os EUA
sempre será o projeto pelo qual
sua mãe morreu. Dificilmente ele
poderá evitar a fantasia (inconsciente ou não) de que sua mãe se
sacrificou para que ele chegasse
até a costa americana. É de esperar que o pai consiga ajudá-lo a lidar da maneira menos neurótica
possível com esse momento de sua
história.
Seja qual for o futuro de Elián,
na coluna anterior eu entendia o
estardalhaço ao redor dele como
um grande momento da Guerra
Fria. Neste apareceria que a verdadeira luta entre os dois blocos
se deu para o controle das almas
de crianças e adolescentes. Cuba
sendo o último representante do
bloco comunista quase extinto, eis
a batalha final: quem seduzirá
uma criança cubana, tomada entre o sonho da mãe que queria
passar para os EUA e o pai fiel ao
castrismo?
Esta interpretação foi confirmada por meus correspondentes extremistas (elogiosos ou críticos).
Pois eles escreveram sobretudo
para me felicitar por ousar criticar Cuba ou para se indignar por
eu ter ousado.
Tantos os elogios quanto as críticas queriam me acuar em um
dos lados da Guerra Fria: quem
critica Cuba estaria de namoro
com o Tio Sam.
Ora, desde 68 eu parei de aceitar
os moldes retóricos impostos pela
Guerra Fria.
Para mim (e para muitos outros
de minha geração) valem ao mesmo tempo estas duas proposições,
sem que nunca uma seja mais importante do que a outra: para gozar das liberdades essenciais em
nossa cultura, não é obrigatório
aceitar a brutalidade da exploração ou de desigualdades aviltantes; para satisfazer as necessidades básicas de todos e diminuir ou
mesmo suprimir a selvageria da
exploração e das desigualdades,
não é necessário sacrificar nenhuma liberdade essencial.
Ora, a retórica da Guerra Fria e
seus restos sempre impõem alternativas forçadas -perguntas que
parecem comandar dilemas morais. "O que você prefere: atendimento dentário gratuito para todos ou acesso irrestrito à Internet?
Escolha: quer garantir a possibilidade de praticar livremente a homossexualidade ou internar os
homossexuais, mas oferecer um
copo de leite a cada manhã para
todas as crianças? Decida: fica feliz com a liberdade de ter um passaporte e sair do país ou renuncia
para que todos os idosos tenham
remédios gratuitos? Ou ainda: é
melhor que todos sejam autorizados a viajar, embora poucos tenham os meios de fazê-lo, ou é
preferível que ninguém seja autorizado para acabar com esta desigualdade?"
A Guerra Fria emaranhou nossa capacidade de pensar a política
numa lista interminável de chantagens alienantes. A simples evocação dessas alternativas me indigna. As chantagens são intoleráveis por serem falsas: não há nenhuma razão para que qualquer
membro dessas alternativas inconsistentes seja excluído pelo outro. Sistematicamente, quero que
ambos sejam possíveis ao mesmo
tempo: a Internet e o dentista, a
homossexualidade livre e o leite
etc.
Atrás dessas falsas escolhas há
uma retórica abstrata do poder. A
mesma que introduz quase sempre as escolhas autoritárias. "Você
quer acabar com a corrupção?
Então esqueça a democracia, que
venham os militares." De fato, é
lícito querer democracia sem corrupção.
Para conter essa retórica insidiosa, é melhor negar qualquer
hierarquia entre termos que não
precisam ser comparados. Não
devo decidir se o acesso a uma
única página da Internet vale ou
não a existência da cesta básica
para todos. Levantar esta alternativa desnecessária é um ato de terror político.
PS: A tentação, obviamente, é a
de defender a prioridade das necessidades básicas. Numa época,
esta parecia ser a tendência do
bloco comunista. Tipo: "Todos
aqui se vestem igual, mas todos
comem. Viva o necessário, abaixo
o supérfluo"."
Agora o neocapitalismo ficou
sozinho e tenta promover a idéia
de que o bem-estar é definido
prioritariamente por necessidades
fisiológicas satisfeitas. Ou seja, pela boa saúde que resulta na alta
expectativa média de vida.
Suspeito que qualquer poder
sempre desconfie, abstratamente,
de todas as pretensões que excedem as ditas necessidades básicas.
Pois elas são variáveis e prometem mudanças imprevistas.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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