São Paulo, quinta-feira, 27 de abril de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

As falsas chantagens da Guerra Fria

Na semana retrasada, nesta coluna, comentei a tragédia de Elián, a criança cubana que segue invadindo o noticiário. Sobretudo tentei entender porque esta história estava se tornando tão relevante.
Recebi, nos dias seguintes, muitos e-mails e outras correspondências de leitores. Entre as mensagens, algumas eram surpreendentemente extremas: elogios entusiasmados ou então críticas acirradíssimas. Achei que, em ambos os casos, havia um mal-entendido. Por isso volto ao assunto.
Desde então, o garoto foi devolvido à força para o pai. Provavelmente esta é a melhor escolha para ele. Tanto mais que os parentes de Miami, com quem ele morava desde seu resgate, enlouqueceram de vez e tentaram pesadamente açular Elián contra o pai.
O menino não precisava de mais essa violência . Mesmo assim, o bê-á-bá da psicologia sugere uma certa prudência. Para Elián, fugir de Cuba para os EUA sempre será o projeto pelo qual sua mãe morreu. Dificilmente ele poderá evitar a fantasia (inconsciente ou não) de que sua mãe se sacrificou para que ele chegasse até a costa americana. É de esperar que o pai consiga ajudá-lo a lidar da maneira menos neurótica possível com esse momento de sua história.
Seja qual for o futuro de Elián, na coluna anterior eu entendia o estardalhaço ao redor dele como um grande momento da Guerra Fria. Neste apareceria que a verdadeira luta entre os dois blocos se deu para o controle das almas de crianças e adolescentes. Cuba sendo o último representante do bloco comunista quase extinto, eis a batalha final: quem seduzirá uma criança cubana, tomada entre o sonho da mãe que queria passar para os EUA e o pai fiel ao castrismo?
Esta interpretação foi confirmada por meus correspondentes extremistas (elogiosos ou críticos). Pois eles escreveram sobretudo para me felicitar por ousar criticar Cuba ou para se indignar por eu ter ousado.
Tantos os elogios quanto as críticas queriam me acuar em um dos lados da Guerra Fria: quem critica Cuba estaria de namoro com o Tio Sam.
Ora, desde 68 eu parei de aceitar os moldes retóricos impostos pela Guerra Fria.
Para mim (e para muitos outros de minha geração) valem ao mesmo tempo estas duas proposições, sem que nunca uma seja mais importante do que a outra: para gozar das liberdades essenciais em nossa cultura, não é obrigatório aceitar a brutalidade da exploração ou de desigualdades aviltantes; para satisfazer as necessidades básicas de todos e diminuir ou mesmo suprimir a selvageria da exploração e das desigualdades, não é necessário sacrificar nenhuma liberdade essencial.
Ora, a retórica da Guerra Fria e seus restos sempre impõem alternativas forçadas -perguntas que parecem comandar dilemas morais. "O que você prefere: atendimento dentário gratuito para todos ou acesso irrestrito à Internet? Escolha: quer garantir a possibilidade de praticar livremente a homossexualidade ou internar os homossexuais, mas oferecer um copo de leite a cada manhã para todas as crianças? Decida: fica feliz com a liberdade de ter um passaporte e sair do país ou renuncia para que todos os idosos tenham remédios gratuitos? Ou ainda: é melhor que todos sejam autorizados a viajar, embora poucos tenham os meios de fazê-lo, ou é preferível que ninguém seja autorizado para acabar com esta desigualdade?"
A Guerra Fria emaranhou nossa capacidade de pensar a política numa lista interminável de chantagens alienantes. A simples evocação dessas alternativas me indigna. As chantagens são intoleráveis por serem falsas: não há nenhuma razão para que qualquer membro dessas alternativas inconsistentes seja excluído pelo outro. Sistematicamente, quero que ambos sejam possíveis ao mesmo tempo: a Internet e o dentista, a homossexualidade livre e o leite etc.
Atrás dessas falsas escolhas há uma retórica abstrata do poder. A mesma que introduz quase sempre as escolhas autoritárias. "Você quer acabar com a corrupção? Então esqueça a democracia, que venham os militares." De fato, é lícito querer democracia sem corrupção.
Para conter essa retórica insidiosa, é melhor negar qualquer hierarquia entre termos que não precisam ser comparados. Não devo decidir se o acesso a uma única página da Internet vale ou não a existência da cesta básica para todos. Levantar esta alternativa desnecessária é um ato de terror político.
PS: A tentação, obviamente, é a de defender a prioridade das necessidades básicas. Numa época, esta parecia ser a tendência do bloco comunista. Tipo: "Todos aqui se vestem igual, mas todos comem. Viva o necessário, abaixo o supérfluo"."
Agora o neocapitalismo ficou sozinho e tenta promover a idéia de que o bem-estar é definido prioritariamente por necessidades fisiológicas satisfeitas. Ou seja, pela boa saúde que resulta na alta expectativa média de vida.
Suspeito que qualquer poder sempre desconfie, abstratamente, de todas as pretensões que excedem as ditas necessidades básicas. Pois elas são variáveis e prometem mudanças imprevistas.


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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