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Emocionante história do duelo que não houve
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Acredito que não aconteça só
comigo: volta e meia, penso se
não teria sido melhor para
mim e para os outros ter vivido
em épocas mais românticas,
sem poluição, sem excesso de
informações inúteis, sem pressa e sem o rock.
Relendo Stendhal, Tolstoi,
Flaubert e outros autores do
século passado, surpreendo-me culpado de estar vivendo num tempo que, entre outras coisas, não me dá tempo
para ter tempo. Gostaria de
poder dispor de mim mesmo,
mais ou menos da forma que
os personagens de "O Vermelho e o Negro" e de "A Educação Sentimental".
Ver o dia nascer num campo,
assistir ao lento amadurecer
das cerejas, passear com a mulher amada ao longo dos trigais, aguardar os bilhetes de
amor da mesma, trazidos por
moços de esquina -enfim, a
vida de outras épocas não me
desagradaria de todo, desde
que permanecesse na minha
situação de pequeno-burguês
arraigado nas comodidades
modernas, como a eletricidade, o automóvel e os CDs da
Deustche Grammophon.
Evidente que não gostaria de
ser um daqueles mineiros descritos por Zola, em "Germinal", nem um soldado atolado na neve, como em "Guerra
e Paz", de Tolstoi.
Teria meus macetes para evitar tais provações. Contudo, e
admitindo a hipótese de me
manter, em séculos passados,
na situação em que atualmente vivo, uma coisa é certa: evitaria a necessidade de ter de
duelar com um inimigo de
sangue ou de circunstância.
Essa mania de épocas mais
honradas, em absoluto, não
me atrai.
Está o sujeito sossegado em
seu canto, entra numa taberna
para tomar um copo de vinho
e um sujeito qualquer o encara
de forma insolente.
Pronto: taí um pretexto para
o duelo. Trocam-se cartões de
visitas, arranjam-se testemunhas e, ao amanhecer, na clareira de um bosque, um deles
tomba mortalmente.
Duelava-se por tudo e por
nada, pela honra da família,
da religião, dos negócios, e, sobretudo, da mulher amada.
Em Flaubert, um dos personagens bate-se porque um desconhecido, num salão, ousou
suspeitar de uma mulher que
nem era a dele.
Felizmente, essa prática, como o comunismo em versão
soviética, entrou para o lixo da
história.
Fico imaginando se, nos
trancos da vida que levei, já
não teria morrido há muito
num desses entreveros inúteis.
Talvez tivesse matado ou ferido algum adversário, mas fatalmente chegaria minha vez e
eu morreria, com a mão apertando o peito ensanguentado,
perdoando o meu rival (como
manda a boa regra dos duelos)
e, ao mesmo tempo, pronunciando o nome da Amada.
Muito romântico, mas não para mim. Prefiro continuar vivo, embora menos glorioso.
O diabo é que, apesar de nascido neste século, já fui desafiado a um duelo.
Pode parecer cascata mas
quem se der ao trabalho de
percorrer a Folha aí pelos idos
de 1963 ou 1964, verá que não
minto.
Deu-se que publiquei uma
crônica sobre a dificuldade de
se arranjar visto para a Argentina, que era obrigatório em
tempos pré-Mercosul.
Ia passar férias com minha
filha em Bariloche e o consulado, no Rio, criou algumas dificuldades, ou melhor, o cônsul
passara a manhã ao telefone e
deixara a fila de interessados
encher-se de espera e cólera.
Feita e publicada a crônica,
dias depois recebi, na redação
do jornal em que trabalhava
("Correio da Manhã"), a visita de dois estranhos estranhamente vestidos: de terno,
gravata, chapéu e sapatos pretos, dois urubus trajados para
uma cerimônia fúnebre.
Deram-me, em silêncio, seus
cartões de visita e ficaram à espera do meu.
Nunca tive esse vício e expliquei aos desconhecidos que
não iria mandar fazer cartões
somente para ser agradável a
eles. E que fôssemos diretamente ao assunto.
Pois o assunto era o seguinte:
o cônsul desafiava-me a um
duelo "ao primeiro sangue"
(eu não sabia o que era isso e
os desconhecidos consideraram uma afronta para eles fornecer qualquer explicação).
Exigiam-me duas testemunhas, avisando-me que, no caso de não fazê-lo, além de me
bater com o cônsul em condições, hora, local e data que eu
marcaria, teria de me bater
com os dois, individualmente,
uma vez que também os ultrajara. Enfim, para evitar complicação maior, eu disse que
sim, aceitava o desafio, meus
padrinhos seriam o poeta Décio Pignatari e o meu colega
Hermano Alves, mais tarde deputado.
Quanto às condições, eu as
daria de público, já que a ofensa fora feita em público.
Os caras se deram por satisfeitos. De minha parte, mandei
as minhas condições: um duelo
de cuspe a distância, aceitando a fita métrica que o cônsul
julgasse a mais honesta.
Bem, não sei no que deu essa
proposta. Parece que o cônsul
me julgou de tal forma despudorado, sem honra alguma,
que decidiu não mais se sentir
ofendido.
E eu fiquei sem ter experimentado essa emoção suplementar que, a bem da verdade,
nunca me fez falta.
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