São Paulo, sexta, 27 de junho de 1997.



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Emocionante história do duelo que não houve

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Acredito que não aconteça só comigo: volta e meia, penso se não teria sido melhor para mim e para os outros ter vivido em épocas mais românticas, sem poluição, sem excesso de informações inúteis, sem pressa e sem o rock.
Relendo Stendhal, Tolstoi, Flaubert e outros autores do século passado, surpreendo-me culpado de estar vivendo num tempo que, entre outras coisas, não me dá tempo para ter tempo. Gostaria de poder dispor de mim mesmo, mais ou menos da forma que os personagens de "O Vermelho e o Negro" e de "A Educação Sentimental".
Ver o dia nascer num campo, assistir ao lento amadurecer das cerejas, passear com a mulher amada ao longo dos trigais, aguardar os bilhetes de amor da mesma, trazidos por moços de esquina -enfim, a vida de outras épocas não me desagradaria de todo, desde que permanecesse na minha situação de pequeno-burguês arraigado nas comodidades modernas, como a eletricidade, o automóvel e os CDs da Deustche Grammophon.
Evidente que não gostaria de ser um daqueles mineiros descritos por Zola, em "Germinal", nem um soldado atolado na neve, como em "Guerra e Paz", de Tolstoi.
Teria meus macetes para evitar tais provações. Contudo, e admitindo a hipótese de me manter, em séculos passados, na situação em que atualmente vivo, uma coisa é certa: evitaria a necessidade de ter de duelar com um inimigo de sangue ou de circunstância.
Essa mania de épocas mais honradas, em absoluto, não me atrai.
Está o sujeito sossegado em seu canto, entra numa taberna para tomar um copo de vinho e um sujeito qualquer o encara de forma insolente.
Pronto: taí um pretexto para o duelo. Trocam-se cartões de visitas, arranjam-se testemunhas e, ao amanhecer, na clareira de um bosque, um deles tomba mortalmente.
Duelava-se por tudo e por nada, pela honra da família, da religião, dos negócios, e, sobretudo, da mulher amada. Em Flaubert, um dos personagens bate-se porque um desconhecido, num salão, ousou suspeitar de uma mulher que nem era a dele.
Felizmente, essa prática, como o comunismo em versão soviética, entrou para o lixo da história.
Fico imaginando se, nos trancos da vida que levei, já não teria morrido há muito num desses entreveros inúteis.
Talvez tivesse matado ou ferido algum adversário, mas fatalmente chegaria minha vez e eu morreria, com a mão apertando o peito ensanguentado, perdoando o meu rival (como manda a boa regra dos duelos) e, ao mesmo tempo, pronunciando o nome da Amada. Muito romântico, mas não para mim. Prefiro continuar vivo, embora menos glorioso.
O diabo é que, apesar de nascido neste século, já fui desafiado a um duelo.
Pode parecer cascata mas quem se der ao trabalho de percorrer a Folha aí pelos idos de 1963 ou 1964, verá que não minto.
Deu-se que publiquei uma crônica sobre a dificuldade de se arranjar visto para a Argentina, que era obrigatório em tempos pré-Mercosul.
Ia passar férias com minha filha em Bariloche e o consulado, no Rio, criou algumas dificuldades, ou melhor, o cônsul passara a manhã ao telefone e deixara a fila de interessados encher-se de espera e cólera.
Feita e publicada a crônica, dias depois recebi, na redação do jornal em que trabalhava ("Correio da Manhã"), a visita de dois estranhos estranhamente vestidos: de terno, gravata, chapéu e sapatos pretos, dois urubus trajados para uma cerimônia fúnebre.
Deram-me, em silêncio, seus cartões de visita e ficaram à espera do meu.
Nunca tive esse vício e expliquei aos desconhecidos que não iria mandar fazer cartões somente para ser agradável a eles. E que fôssemos diretamente ao assunto.
Pois o assunto era o seguinte: o cônsul desafiava-me a um duelo "ao primeiro sangue" (eu não sabia o que era isso e os desconhecidos consideraram uma afronta para eles fornecer qualquer explicação).
Exigiam-me duas testemunhas, avisando-me que, no caso de não fazê-lo, além de me bater com o cônsul em condições, hora, local e data que eu marcaria, teria de me bater com os dois, individualmente, uma vez que também os ultrajara. Enfim, para evitar complicação maior, eu disse que sim, aceitava o desafio, meus padrinhos seriam o poeta Décio Pignatari e o meu colega Hermano Alves, mais tarde deputado.
Quanto às condições, eu as daria de público, já que a ofensa fora feita em público.
Os caras se deram por satisfeitos. De minha parte, mandei as minhas condições: um duelo de cuspe a distância, aceitando a fita métrica que o cônsul julgasse a mais honesta.
Bem, não sei no que deu essa proposta. Parece que o cônsul me julgou de tal forma despudorado, sem honra alguma, que decidiu não mais se sentir ofendido.
E eu fiquei sem ter experimentado essa emoção suplementar que, a bem da verdade, nunca me fez falta.



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