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FERNANDO BONASSI
Nossa Senhora Aparecida
A casa de Devanir não se
combina: porta de alumínio
em batente de madeira, privada
bege com lavatório azul; no piso,
cerâmica, taco e cimento vermelho; uma parede de bloco, outra
de tijolo cozido...
Não é que Devanir goste de misturar cores e formas, mas, desde
que largou a família e se instalou
no bairro, aceitou receber o que
oferecessem pelo seu serviço.
O serviço que Devanir tem agora não teve desde sempre. Com o
diploma de torneiro do Senai,
saiu trabalhando por mais de 14
anos, mas o que precisava do cuidado de metalúrgico, as máquinas deixavam pronto, de maneira
que foi se perdendo pelos empregos perdidos e acabou sem lugar
de tirar sustento.
Esse serviço de Devanir começou de fim de semana, quando a
arruaça abraçava a vila, e quem
não era daquilo tinha de se trancar, rezando contra maldição, polícia e bala perdida.
O primeiro foi um velho que gritava no boteco do Soares. Devanir, de pai alcoólatra, não suportava esses tipos. Quando fez o bêbado sumir, ganhou muitas coisas pela gratidão das pessoas. Em
seguida foi chamado pelo dono
do depósito de material de construção, que dois moleques viviam
pulando o muro pra roubar telha.
Deu um jeito neles e ganhou um
milheiro de tijolos. Aqueles da parede do fundo. Depois foram os
estupradores: a porta de alumínio, o liquidificador, fogão e geladeira. Tinha se especializado:
mandava ajoelhar, encomendava
as almas e fazia o que tinha de ser
feito.
No começo enjoava, mas depois
acostumou. Devanir era devoto
de Nossa Senhora Aparecida, porque um dia estava se afogando
em São Vicente e, quando ele gritou o nome dela, veio como que
uma mão do céu e o puxou de volta pra esta vida. A santa surgira
de um rio, ele ressurgira do mar,
então passou a pensar que tinha
essa ligação com a padroeira. Por
isso sempre encomendava as suas
almas através dela. Também
acreditava que, se a gente vem ao
mundo pelo meio de uma mãe,
deve ser levado dele por intermédio de outra. Coisas do Devanir...
Cada um dos dois cômodos da
casa tem uma imagem de gesso
pintado. Uma em cima da geladeira, outra em cima do guarda-roupa. As duas olhando com pena por dentro do manto.
As pessoas confiavam em Devanir, mas não sabiam que, nos últimos tempos, deu pra ouvir barulhos e ficar nervoso. Devanir foi
ao médico e pediu remédio calmante. O remédio dava sono,
mas o barulho diminuía.
Sexta-feira passada Devanir tinha acertado de dormir no posto
de gasolina do Filó, que malandro andava estourando os armários pra roubar óleo de motor. Devanir tomou banho, engoliu dois
comprimidos, pegou carteira, cigarros e, por incrível que pareça,
quando colocou no pescoço a medalhinha da Nossa Senhora, nada
mais nada menos que ela própria
apareceu na sua frente.
- De... va... nir...
Devanir olhou bem pra aparição. Parecia mais escurinha que a
estátua, mas ele não comentou.
- De... va... nir...
A santa sentou na cômoda enquanto Devanir lia a bula do remédio. Falava em alucinação,
mas ele não entendeu direito.
Sussurrou:
- Mãe... Mãezinha?
Depois baixou pra beijar a mão
da santa, mas ela puxou o braço.
- Orgulhosa...
- De... va... nir...
- Fala, mãezinha!
Devanir percebeu que ela não
abria a boca, mas deu pra ouvir:
- Devanir... você é um bosta.
A voz ecoava dentro do quarto,
mas não tinha espaço pra tanto
eco. Ele deu um passo pra trás,
tropeçou na cama e caiu deitado.
- Que é isso, Mãezinha?! Chamo sempre que tô pra acabar com
um e a senhora me chega com essa?!
- Você não pode fazer isso...
Devanir aproveitou pra pegar o
revólver e enfiar por trás da calça:
- Como? Deixo essa gente desprotegida?!
- Você é burro, Devanir.
Devanir abriu a janela.
- Se veio aqui pra me humilhar, então pode ir saindo.
- Eu quero a sua promessa...
Devanir olhou pro relógio, já
passava mais de hora do encontro
com Filó. Valia televisão de 20 polegadas e ele ficou ansioso.
- Mais promessa?! De quê?
- Pára de matar criança, Devanir...
Devanir sentiu como se a medalhinha pesasse um quilo. Não
conseguia encarar a santa, mas
disse:
- Que criança o quê! Essa gente aí fica pronta e estragada com
12, 13... não tem nada de criança
não... A senhora devia saber disso.
- Eu sei, Devanir... Eu sei... E
você, que é um cagão, o que você
sabe?
- Eu sei isso daqui, ó...
Devanir puxou a arma e disparou. A bala flutuou pelo corpo da
santa e foi estilhaçar o gesso por
cima do guarda-roupa. Ela olhou
pra própria imagem aos pedaços
e riu. Devanir sentiu falta de ar,
caiu de joelhos e chorou. Quando
se ergueu, a santa tinha desaparecido. Então sentiu um pouco de
vergonha e prometeu não tomar
mais aquele remédio esquisito,
mas ninguém sabe se deixou de
fazer maldade.
O escritor Fernando Bonassi passa a escrever quinzenalmente neste espaço
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