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São Paulo, quarta-feira, 27 de agosto de 2003

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MARCELO COELHO

Testemunhos de dor

William Fisher, de nove anos. Perdeu a vida em Rodney Road, Walworth, ao tentar evitar que seu irmão menor fosse atropelado. Doze de julho de 1886.
John Cranmer, de Cambridge. Vinte e três anos. Afogou-se perto de Ostende ao salvar a vida de um estrangeiro desconhecido. Oito de agosto de 1901.
Frederick Alfred Croft, inspetor ferroviário. Trinta e um anos. Impediu o suicídio de uma mulher lunática na estação de Woolwich, mas foi pego pelo trem. Onze de janeiro de 1878.
Feitas de belos ladrilhos branco-amarelados com letras azuis, dezenas de inscrições fúnebres desse tipo estão afixadas no muro de um parque londrino, perto da St. Paul's Cathedral.
Quarenta e uma delas foram reproduzidas pela artista plástica Susan Hiller numa obra de 1981, intitulada "Monument". A instalação pode ser vista na Oca, no parque Ibirapuera. Faz parte da mostra "A Bigger Splash", que reúne peças do acervo da Tate Gallery de Londres.
Iluminadas por trás, como slides, há fotos bem grandes dos azulejos, dispostas simetricamente numa parede. Um banco de praça dá as costas para essa parede. Quem quiser sentar-se ali pode pegar os fones de ouvido disponíveis e ouvir um depoimento da artista. Já quem passa pela obra, sem se deter, verá uma pessoa absorta, sentada no banco, como se estivesse escutando rádio, indiferente ao drama essencial que cada pedra mortuária relatou.
Entre as diversas e caprichadas estelas de cerâmica, vemos uma que está sem dono: a artista simplesmente pintou sobre o espaço em branco, como se fosse uma pichação, a frase "Strive to be your own hero" (Esforce-se para ser seu próprio herói).
Essa súbita interpelação ao espectador nada tem de simples ou de edificante. Se estávamos comovidos ao ler os exemplos de martírio narrados nas pedras funerárias e se reprovávamos levemente a pessoa sentada no banco, de costas para a série de tragédias ali exposta, a frase pichada vai num sentido inverso ao da comoção e da solidariedade.
É de um individualismo exigente, sem contemplação. De resto, como alguém poderia ser herói de si mesmo? Cultuando a própria imagem ou aniquilando-a em sacrifício? Impossível saber.
Reproduz-se assim, na consciência do espectador, o mesmo dilema que a obra encenava exteriormente. Ver ou não ver? Ficar de costas para o mundo, sem vê-lo, mas participando da cena? Ou ficar diante dele, admirando -mas a distância- seu espetáculo de heroísmos e acidentes?
Entre Apolo e Dionísio, "Monument" cria uma espécie de "lugar impossível", que é bem o nosso: o de uma necessária indiferença e de um inevitável horror diante de tudo o que ficamos sabendo -pela TV, pelos jornais, pela internet, ou ao vivo, nas ruas- a respeito do sofrimento alheio.
Num poema intitulado "Musée des Beaux-Arts", W.H. Auden observava que, nos quadros dos grandes mestres, tragédias terríveis convivem com cenas de total serenidade e placidez. Bruegel, por exemplo, mostra a queda de Ícaro -o rapaz despencando, com as asas derretidas pelo calor do Sol- em meio a uma pacata paisagem camponesa, em que cada um trata da sua vida, cuida de puxar a carroça ou de ceifar o trigo e não toma conhecimento do lance fatal ali bem perto.
Seria um clichê considerar "tipicamente britânicas" essa distância, essa ironia ou o deslocamento de emoções que a instalação de Susan Hiller (nascida nos Estados Unidos, aliás) consegue suscitar. Ainda mais porque boa parte das obras expostas na Oca parece enfatizar justamente o contrário: a exasperação visceral, a violência, um sofrimento que se pode como que agarrar pelas mãos.
Nem é preciso citar, a esse respeito, as pinturas de Francis Bacon, que valem sozinhas uma visita ao Ibirapuera. As fotos de Sarah Lucas (um auto-retrato fumando no banheiro, outra com ovos fritos em cima dos seios) e as que Richard Billingham fez de sua própria família -de que, infelizmente, só há um exemplar na exposição-, para não falar do minúsculo casebre que o afro-caribenho Donald Rodney construiu com pedaços de sua própria pele, são testemunhos quase convulsivos de dor psíquica, física... e também de dor "social", se se pode dizer assim.
Helen Chadwick fotografou peças de carne crua: um ou dois bifes de alcatra, nada mais. Ampliadas, parecem representar o torso de um homem esfolado, ou o ventre de uma mulher cortada ao meio. Do mesmo modo que as lápides heróicas de Susan Hiller, os "Enfleshings" de Helen Chadwick, são como slides grandes, iluminados por trás. Num caso, tínhamos uma obra emocionante, mas que jogava com a ironia e a ausência; no outro, a vida (ou será a morte?) é que berra sua presença bruta, visceral e escarlate.
Entre a presença e a ausência, talvez a síntese esteja na obra de David Hockney, que empresta o título à exposição, "A Bigger Splash". Numa tela muito lisa, plácida e realista, há um centro feito de manchas e respingos brancos: representa-se a água de uma piscina californiana, frações de segundo depois de alguém ter saltado do trampolim. Nenhum ser humano foi retratado ali; mas em toda parte estão os sinais de sua queda.


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