|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
MARCELO COELHO
Testemunhos de dor
William Fisher, de nove
anos. Perdeu a vida em
Rodney Road, Walworth, ao tentar evitar que seu irmão menor
fosse atropelado. Doze de julho de
1886.
John Cranmer, de Cambridge.
Vinte e três anos. Afogou-se perto
de Ostende ao salvar a vida de
um estrangeiro desconhecido. Oito de agosto de 1901.
Frederick Alfred Croft, inspetor
ferroviário. Trinta e um anos. Impediu o suicídio de uma mulher
lunática na estação de Woolwich,
mas foi pego pelo trem. Onze de
janeiro de 1878.
Feitas de belos ladrilhos branco-amarelados com letras azuis, dezenas de inscrições fúnebres desse
tipo estão afixadas no muro de
um parque londrino, perto da St.
Paul's Cathedral.
Quarenta e uma delas foram reproduzidas pela artista plástica
Susan Hiller numa obra de 1981,
intitulada "Monument". A instalação pode ser vista na Oca, no
parque Ibirapuera. Faz parte da
mostra "A Bigger Splash", que
reúne peças do acervo da Tate
Gallery de Londres.
Iluminadas por trás, como slides, há fotos bem grandes dos
azulejos, dispostas simetricamente numa parede. Um banco de
praça dá as costas para essa parede. Quem quiser sentar-se ali pode pegar os fones de ouvido disponíveis e ouvir um depoimento da
artista. Já quem passa pela obra,
sem se deter, verá uma pessoa absorta, sentada no banco, como se
estivesse escutando rádio, indiferente ao drama essencial que cada pedra mortuária relatou.
Entre as diversas e caprichadas
estelas de cerâmica, vemos uma
que está sem dono: a artista simplesmente pintou sobre o espaço
em branco, como se fosse uma pichação, a frase "Strive to be your
own hero" (Esforce-se para ser seu
próprio herói).
Essa súbita interpelação ao espectador nada tem de simples ou
de edificante. Se estávamos comovidos ao ler os exemplos de martírio narrados nas pedras funerárias e se reprovávamos levemente
a pessoa sentada no banco, de
costas para a série de tragédias ali
exposta, a frase pichada vai num
sentido inverso ao da comoção e
da solidariedade.
É de um individualismo exigente, sem contemplação. De resto,
como alguém poderia ser herói de
si mesmo? Cultuando a própria
imagem ou aniquilando-a em sacrifício? Impossível saber.
Reproduz-se assim, na consciência do espectador, o mesmo
dilema que a obra encenava exteriormente. Ver ou não ver? Ficar
de costas para o mundo, sem vê-lo, mas participando da cena? Ou
ficar diante dele, admirando
-mas a distância- seu espetáculo de heroísmos e acidentes?
Entre Apolo e Dionísio, "Monument" cria uma espécie de "lugar
impossível", que é bem o nosso: o
de uma necessária indiferença e
de um inevitável horror diante de
tudo o que ficamos sabendo -pela TV, pelos jornais, pela internet,
ou ao vivo, nas ruas- a respeito
do sofrimento alheio.
Num poema intitulado "Musée
des Beaux-Arts", W.H. Auden observava que, nos quadros dos
grandes mestres, tragédias terríveis convivem com cenas de total
serenidade e placidez. Bruegel,
por exemplo, mostra a queda de
Ícaro -o rapaz despencando,
com as asas derretidas pelo calor
do Sol- em meio a uma pacata
paisagem camponesa, em que cada um trata da sua vida, cuida de
puxar a carroça ou de ceifar o trigo e não toma conhecimento do
lance fatal ali bem perto.
Seria um clichê considerar "tipicamente britânicas" essa distância, essa ironia ou o deslocamento
de emoções que a instalação de
Susan Hiller (nascida nos Estados
Unidos, aliás) consegue suscitar.
Ainda mais porque boa parte das
obras expostas na Oca parece enfatizar justamente o contrário: a
exasperação visceral, a violência,
um sofrimento que se pode como
que agarrar pelas mãos.
Nem é preciso citar, a esse respeito, as pinturas de Francis Bacon, que valem sozinhas uma visita ao Ibirapuera. As fotos de Sarah Lucas (um auto-retrato fumando no banheiro, outra com
ovos fritos em cima dos seios) e as
que Richard Billingham fez de
sua própria família -de que, infelizmente, só há um exemplar na
exposição-, para não falar do
minúsculo casebre que o afro-caribenho Donald Rodney construiu com pedaços de sua própria
pele, são testemunhos quase convulsivos de dor psíquica, física... e
também de dor "social", se se pode dizer assim.
Helen Chadwick fotografou peças de carne crua: um ou dois bifes de alcatra, nada mais. Ampliadas, parecem representar o
torso de um homem esfolado, ou
o ventre de uma mulher cortada
ao meio. Do mesmo modo que as
lápides heróicas de Susan Hiller,
os "Enfleshings" de Helen Chadwick, são como slides grandes, iluminados por trás. Num caso, tínhamos uma obra emocionante,
mas que jogava com a ironia e a
ausência; no outro, a vida (ou será a morte?) é que berra sua presença bruta, visceral e escarlate.
Entre a presença e a ausência,
talvez a síntese esteja na obra de
David Hockney, que empresta o
título à exposição, "A Bigger
Splash". Numa tela muito lisa,
plácida e realista, há um centro
feito de manchas e respingos
brancos: representa-se a água de
uma piscina californiana, frações
de segundo depois de alguém ter
saltado do trampolim. Nenhum
ser humano foi retratado ali; mas
em toda parte estão os sinais de
sua queda.
Texto Anterior: Análise: Rede regional pode se tornar alternativa Próximo Texto: Música: Remixes descaracterizam Cesaria Evora Índice
|