São Paulo, segunda-feira, 27 de agosto de 2007

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NELSON ASCHER

Consumir ou não, eis a questão


Filha do consumo, a geração dos anos 60 vem demonizando este pressuposto da fartura

CADA GERAÇÃO , chegando à adolescência ou pouco depois, costuma se revoltar contra os valores da precedente. A parcela mais barulhenta de cada faixa etária acaba desencadeando conflito geracional que não temos razões para supor que não seja uma constante humana.
O teor da rebelião depende, é óbvio, do caráter e do modo de vida da geração desafiada. Agora, como toda gripe é gripe, mas a cada década aparece uma especialmente letal e a cada século uma devastadora, há, de quando em quando, choques geracionais mais intensos e marcantes que a média. Um desses, sem dúvida, é o que contrapôs a geração que acompanhou jovem ou adulta a Segunda Guerra Mundial àquela que amadureceu, ou melhor, chegou à idade da desrazão nos anos 60.
O catálogo de coisas que diferenciam ou separam ambos os grupos é longo. Há, para começar, a atitude diante do sexo, pois os jovens dos anos 60 foram os primeiros a desfrutarem integralmente da liberação deste, como bem observou o poeta britânico Philip Larkin ao escrever que "As relações sexuais começaram/ em 1963/ (meio tarde para mim)". E essa autêntica revolução foi apenas o fulcro de uma mais ampla, que contagiou o grosso das relações interpessoais.
O papel do entretenimento na vida das pessoas também se alterou radicalmente e isso se deve não apenas à chegada dos aparelhos de televisão aos lares de classe média, mas às invenções e aperfeiçoamentos tecnológicos que permitiram aos jovens terem sua própria vitrola no quarto, comprarem cada vez mais discos, e isso precisamente quando o rock começava a conquistar o mundo. O fenômeno de milhões de jovens ouvindo sozinhos ou reunidos em massa nos shows cantores ou bandas que se transformavam em ídolos planetários era tão historicamente novo quanto incompreensível para os então adultos.
A geração que, menos do que autora dessas transformações, foi sua beneficiária original é chamada pelos americanos de "baby boomers", pois seus integrantes nasceram numa época quando, com as conflagrações gigantescas do século passado aparentemente resolvidas, houve uma alta sensível nas taxas de natalidade. Essa é igualmente a geração que, de Berkeley à Sorbonne, protagonizou as rebeliões estudantis dos anos 60, cujas causas e metas eles desconheciam tanto quanto nós.
Por mais que se queira entender esse fenômeno geral lançando-se mão de disciplinas que vão da sociologia à psicanálise, é difícil ignorar que ele coincidiu com imensas, embora nem sempre transparentes, mudanças na vida material dos homens. Foi nesse umbral dos anos 50/60 que parcela importante da humanidade, a classe média ocidental, atingiu níveis de prosperidade, saúde, consumo e ócio nunca antes sonhados na história, exceto por alguns poucos monarcas e potentados. A boa vida pareceu de repente acessível a dezenas de milhões e, em breve, a todo mundo.
De modo similar, a política e (apesar da sombra quase abstrata da Guerra Fria) as matanças em escala industrial, trincheiras, bombardeios e genocídios, as paixões, rivalidades e ódios nacionais, étnicos ou religiosos, tudo isso prometia ter se tornado coisa do passado. A paz na terra aos jovens de boa vontade estava ao alcance da mão, bastando que milhares deles se reunissem e cantassem em coro desafinado algum hino kitsch como "Imagine", de John Lenon. Querer era poder e, súbito, todos queriam a mesma coisa.
Se bem que todo seu bem-estar decorresse do/e se traduzisse no acesso crescente aos bens materiais ou simbólicos, a geração em questão acabou transformando em seu maior demônio não apenas a de seus pais, mas as condições que esta lhe legara, condições cujo produto ela própria nunca deixou de ser. Como filha que é do consumo, a geração dos anos 60 revoltou-se contra isso e vem, desde então, demonizando este pressuposto básico da fartura, da paz e da boa vida alcançadas.
Muito de seu anti-consumismo, que se materializa em canções, poemas, quadros e outros objetos culturais de consumo, dirige-se hoje em dia contra os pilares da ordem econômica que possibilitaria aos habitantes do Terceiro Mundo viverem como a prole mimada do Primeiro. Em alguns círculos, a campanha contra o consumo converteu-se numa guerra contra a civilização humana e em prol de uma natureza tão idealizada quanto desumanizada. Anti-consumismo, culto fanático à pureza natural e outras manifestações paralelas são apenas o começo do haraquiri da única civilização que ainda vale a pena preservar.

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