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NELSON ASCHER
Consumir ou não, eis a questão
Filha do consumo, a geração dos anos 60 vem demonizando este pressuposto da fartura
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CADA GERAÇÃO , chegando à
adolescência ou pouco depois, costuma se revoltar contra os valores da precedente. A parcela mais barulhenta de cada faixa
etária acaba desencadeando conflito
geracional que não temos razões para supor que não seja uma constante
humana.
O teor da rebelião depende, é óbvio, do caráter e do modo de vida da
geração desafiada. Agora, como toda
gripe é gripe, mas a cada década aparece uma especialmente letal e a cada século uma devastadora, há, de
quando em quando, choques geracionais mais intensos e marcantes
que a média. Um desses, sem dúvida,
é o que contrapôs a geração que
acompanhou jovem ou adulta a Segunda Guerra Mundial àquela que
amadureceu, ou melhor, chegou à
idade da desrazão nos anos 60.
O catálogo de coisas que diferenciam ou separam ambos os grupos é
longo. Há, para começar, a atitude
diante do sexo, pois os jovens dos
anos 60 foram os primeiros a desfrutarem integralmente da liberação deste, como bem observou o
poeta britânico Philip Larkin ao escrever que "As relações sexuais começaram/ em 1963/ (meio tarde para mim)". E essa autêntica revolução
foi apenas o fulcro de uma mais ampla, que contagiou o grosso das relações interpessoais.
O papel do entretenimento na vida das pessoas também se alterou
radicalmente e isso se deve não apenas à chegada dos aparelhos de televisão aos lares de classe média, mas às invenções e aperfeiçoamentos
tecnológicos que permitiram aos jovens terem sua própria vitrola no
quarto, comprarem cada vez mais
discos, e isso precisamente quando
o rock começava a conquistar o
mundo. O fenômeno de milhões de
jovens ouvindo sozinhos ou reunidos em massa nos shows cantores
ou bandas que se transformavam
em ídolos planetários era tão historicamente novo quanto incompreensível para os então adultos.
A geração que, menos do que autora dessas transformações, foi sua
beneficiária original é chamada pelos americanos de "baby boomers",
pois seus integrantes nasceram numa época quando, com as conflagrações gigantescas do século passado
aparentemente resolvidas, houve
uma alta sensível nas taxas de natalidade. Essa é igualmente a geração
que, de Berkeley à Sorbonne, protagonizou as rebeliões estudantis dos
anos 60, cujas causas e metas eles
desconheciam tanto quanto nós.
Por mais que se queira entender
esse fenômeno geral lançando-se
mão de disciplinas que vão da sociologia à psicanálise, é difícil ignorar
que ele coincidiu com imensas, embora nem sempre transparentes,
mudanças na vida material dos homens. Foi nesse umbral dos anos
50/60 que parcela importante da
humanidade, a classe média ocidental, atingiu níveis de prosperidade,
saúde, consumo e ócio nunca antes
sonhados na história, exceto por alguns poucos monarcas e potentados. A boa vida pareceu de repente
acessível a dezenas de milhões e, em
breve, a todo mundo.
De modo similar, a política e (apesar da sombra quase abstrata da
Guerra Fria) as matanças em escala
industrial, trincheiras, bombardeios
e genocídios, as paixões, rivalidades
e ódios nacionais, étnicos ou religiosos, tudo isso prometia ter se tornado coisa do passado. A paz na terra aos jovens de boa vontade estava ao
alcance da mão, bastando que milhares deles se reunissem e cantassem em coro desafinado algum hino
kitsch como "Imagine", de John Lenon. Querer era poder e, súbito, todos queriam a mesma coisa.
Se bem que todo seu bem-estar
decorresse do/e se traduzisse no
acesso crescente aos bens materiais
ou simbólicos, a geração em questão
acabou transformando em seu
maior demônio não apenas a de seus
pais, mas as condições que esta lhe
legara, condições cujo produto ela
própria nunca deixou de ser. Como
filha que é do consumo, a geração
dos anos 60 revoltou-se contra isso e
vem, desde então, demonizando este pressuposto básico da fartura, da
paz e da boa vida alcançadas.
Muito de seu anti-consumismo,
que se materializa em canções, poemas, quadros e outros objetos culturais de consumo, dirige-se hoje em
dia contra os pilares da ordem econômica que possibilitaria aos habitantes do Terceiro Mundo viverem
como a prole mimada do Primeiro.
Em alguns círculos, a campanha
contra o consumo converteu-se numa guerra contra a civilização humana e em prol de uma natureza tão
idealizada quanto desumanizada.
Anti-consumismo, culto fanático à
pureza natural e outras manifestações paralelas são apenas o começo
do haraquiri da única civilização que
ainda vale a pena preservar.
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